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quarta-feira, 21 de março de 2018

Os novos zumbis de uma velha ideologia - Paulo Roberto de Almeida

Os herdeiros de uma derrota intelectual e de um fracasso prático: os adeptos do marxismo cultural

Paulo Roberto de Almeida
Doutor em ciências sociais, mestre em economia internacional;
professor de Economia Política no Uniceub (Brasília); blog Diplomatizzando.


O objetivo deste ensaio improvisado, rapidamente escrito, é claro: demonstrar que o socialismo morreu, mas que o marxismo cultural tenta mantê-lo vivo, por uma absoluta necessidade de persistência de alguma crença nas supostas virtudes salvadoras do socialismo original. Para isso, seus adeptos usam todos os tipos de manobras, mesmo as mais inconsistentes e incoerentes. Meu objetivo é apenas o de lutar contra os zumbis do pensamento, se é que existe algum pensamento por trás dos novos ideólogos.
Qualquer pessoa medianamente bem informada – ou seja, educada em algum sistema formal de ensino, ou pelo menos alfabetizada, acompanhando o noticiário corrente pelos meios de comunicação disponíveis, conhecedora de um mínimo de história do Brasil e do mundo – sabe que o socialismo morreu. Socialismo aqui deve ser entendido como propostas ou projetos de engenharia social, empreendidos a partir de uma base teórica – os escritos de Marx e Engels – e de exercícios de política prática, por meio de partidos e movimentos voltados para a conquista do poder – a exemplo de líderes comunistas como Lênin, Stalin e Mao Tsé-tung – e cujo resultado mais evidente foi uma imensa tragédia social no decorrer do século XX: estatísticas compiladas por historiadores de renome colocam a conta dos empreendimentos comunistas na casa dos 100 milhões de mortos, em diversos continentes.
Esse socialismo, mais comumente chamado de comunismo, tomava como ponto de partida as teses de Rousseau sobre as origens das desigualdades sociais – que ele colocava na propriedade privada –, amplificou suas demandas igualitárias nas demandas mais radicais da Revolução Francesa sobre a construção da igualdade social com base no poder do Estado, passou pelo Terror da guilhotina contra aqueles que eram julgados “inimigos do povo”, manifestou-se filosoficamente na primeira metade do século XIX nas propostas dos chamados “socialistas utópicos” – tal como designados por Karl Marx – e consolidou-se doutrinalmente nos escritos de filosofia política de Marx e Engels, começando pelo Manifesto de 1848, que pregava a “luta de classes” para derrubar o “Estado da burguesia” e para instaurar por meio da luta revolucionária do proletariado uma sociedade sem classes, com a abolição completa da propriedade privada e a atribuição de todo o poder a um “Estado democrático”, que se encarregaria de construir a sociedade ideal, aquela baseada no trabalho de cada um, “segundo suas capacidades”, e a garantia de meios de vida a qualquer um, “segundo suas necessidades”.
Essa utopia revolucionária de uma sociedade sem classes, radicalmente justa e igualitária, cujo sistema político prometia o desaparecimento progressivo do “Estado dos trabalhadores”, substituído pela “administração das coisas”, como pretendia Engels, nunca teve nenhuma condição de ser estabelecida, pelo menos sem que a implantação e o funcionamento de tal sistema de organização social e política requeresse graus inéditos de violência, como foi efetivamente o que se passou, quando revolucionários influenciados pelas ideias da dupla  tentaram colocar em prática esses gigantescos projetos de engenharia social. Esse vasto empreendimento de transformação sistêmica começou pela Rússia, em 1917, foi tentado em diversos outros países com fracassos espetaculares na primeira metade do século XX, e só conseguiu ser implementado na sequência imediata da Segunda Guerra Mundial, pela força do Exército Vermelho na Europa central e oriental, e na China como consequência da invasão japonesa e da guerra civil deslanchada pelos comunistas contra um governo corrupto e militarmente ineficaz. Alguns outros poucos exemplos se manifestaram aqui e ali, sempre com altas doses de violência contra aqueles que se opunham ao monopólio do poder por um único partido, e rotundos fracassos econômicos em todos os casos.
Esse é o segundo aspecto da utopia marxista, o de suas propostas econômicas, que muitos ainda consideram possuir algum sentido “legítimo”, ou historicamente “justificado”, em vista de supostas “contradições” do capitalismo: crises, desigualdade, concentração de renda, exclusão, desemprego e pobreza. Marx acreditava que o “modo de produção burguês” estava inevitavelmente condenado ao desaparecimento, por se basear na “exploração dos trabalhadores” – via “extração da mais-valia”, uma tese que não possui qualquer consistência econômica – e por aprofundar a polarização social, ao conduzir a sociedade à dominação de um punhado de ricos de um lado, os capitalistas, e da maioria de trabalhadores oprimidos e explorados, de outro. A solução, segundo ele, seria a estatização, depois a coletivização, de todos os meios de produção, e a operação de uma economia administrada pelos próprios trabalhadores. Lênin deu um passo adiante ao tentar implementar essas teses desprovidas de qualquer fundamento empírico de Marx: ele, que era um gênio em política, mas um completo ignorante em economia, decidiu simplesmente abolir os mercados, em favor de um sistema de planejamento centralizado, administrado por burocratas. Obviamente não deu certo, e levou a Rússia à sua primeira “epidemia de fome” (haveria outras), o que interrompeu provisoriamente o experimento e levou a uma “Nova Política Econômica”, com funcionamento parcial dos mercados.
Interessante notar que, nessa mesma época, entre 1919 e 1920, um jovem economista austríaco, Ludwig von Mises, que tinha sido socialista antes da Grande Guerra, ao observar as propostas socialistas e o experimento comunista de Lênin, escreveu um “panfleto” econômico, cuidadosamente intitulado “O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista”, no qual ele contestava a possibilidade de funcionamento de um sistema econômico que dispensasse os preços de mercados e pretendesse organizar a produção unicamente a partir de preços administrados por burocratas do Estado. Um sistema desse tipo, disse Mises, seria impossível de funcionar em bases racionais, justamente devido à inexistência de cálculo econômico com base na raridade relativa dos insumos, ou seja, dos fatores de produção. O que sabemos, depois disso, foi que Stalin foi capaz de colocar um elefante a voar, ou seja, fazer o socialismo “funcionar”, mas ao custo de milhões de mortos, de uma opressão tão descomunal que o comunismo soviético pode ser equiparado à reprodução moderna de um gigantesco modo escravista de produção, com níveis baixíssimos de consumo popular. Essa, aliás, junto com a total falta de liberdade política, foi a causa da implosão e derrocada final do modo socialista de produção, nunca qualquer derrota para os inimigos ocidentais, ou os capitalistas das economias de mercado, que por acaso estavam financiando todos os regimes socialistas durante a maior parte do pós-guerra.
O socialismo de tipo soviético, e suas derivações terceiro-mundistas – hoje reduzidos a dois pequenos resquícios de completa tirania –, foi, portanto, um completo fracasso, e não há ninguém que possa contestar essa realidade, nem mesmo o PCdoB. A China pós-Mao, teve a “sorte” de contar com mandarins comunistas mais esclarecidos, que deram a partida ao mais gigantesco experimento de transformação social da era moderna, com base numa economia de mercado, ainda que dominada por um sistema autocrático de partido único, mas dispondo de mais liberdade de empreendimento, e de menor “opressão tributária” estatal, do que o supostamente capitalista Brasil. Não se conhecem, na atualidade, propostas sérias – isto é, fora dos delírios universitários que conhecemos bem – de retorno à economia planificada centralmente, o que confirma, portanto, a primeira frase do título: o socialismo morreu.
O fracasso de propostas utópicas de organização política e social, de projetos pouco racionais de organização da produção e distribuição de bens e serviços, não significa, porém, o desaparecimento das ideias que lhes deram origem. Ideias são muito mais poderosas do que se pode pensar, mais “permanentes” do que empreendimentos eventuais que delas partiram para algum exercício concreto de implantação efetiva, mas seguido de sua derrota prática. Aqui cabe considerar que o marxismo foi, parcialmente acompanhado pelo freudismo, a mais poderosa ideologia política e social do século XX, e se prolonga no século XXI, mesmo sem qualquer regime socialista digno desse nome, mas com base nas ideias relevantes vindas da vertente rousseaniana do Iluminismo, agregado das pregações igualitárias da Revolução Francesa, passando obviamente pela filosofia social marxista, até chegar na doutrina política do leninismo derrotado, o marxismo soft de Antonio Gramsci. O comunista italiano revisou a doutrina leninista com base na leitura de Maquiavel – não só o Príncipe, mas também os Discursos da Primeira Década de Tito Lívio – e de outros clássicos, e daí formulou uma estratégia de conquista suave do poder, pela via da penetração nos principais aparelhos do Estado, dispensando o putsch leninista e formulando as bases da apropriação gradual do poder.
O gramscismo é esse marxismo cultural disseminado amplamente no Brasil pós-derrota da esquerda tradicional em 1964, ao lado de alguns empreendimentos leninistas, castristas e maoístas que foram evidentemente derrotados pela força superior do Estado militar. A estratégia transmutou-se na conquista gradual, quase imperceptível, desses aparelhos do Estado – na área educacional, por exemplo – e das diversas correias de transmissão da ação do Estado, ou seja, o corporativismo dos mandarins do Estado e sua expressão social, os sindicatos. Eles passam a disseminar um marxismo vulgar – que tem pouco a ver com a doutrina original marxista – e um esquerdismo simplório, mas que alcança razoável sucesso político e eleitoral pelas mesmas razões pelas quais partidos socialistas ou socialdemocratas são ainda bem votados atualmente: eles prometem igualdade de condições, justiça social, políticas públicas redistributivas, amplos canais de assistência, medidas setoriais de proteção de grupos de interesse, enfim, a “sopa política” de promessas generosas e de reivindicações “justas”, que são amplamente bem acolhidas por um eleitorado sumariamente instruído ou informado.
Essas características da política brasileira – igualmente encontradas em diversos outros países, sobretudo na América Latina – estão muito bem refletidas no grande contorcionismo conceitual levado a efeito pelos adeptos do “marxismo cultural”. Os que se refugiam nos desvãos de um pensamento que não possuir qualquer coerência são todos aqueles que encontramos no ambiente universitário animados dos mesmos propósitos salvacionistas. Eles são os típicos representantes do gramscismo vulgar que domina a esquerda brasileira desde várias décadas: os sindicalistas da educação, os militantes do politicamente correto, os defensores de privilégios corporativos, os agitadores das novas causas das minorias, raciais ou de gênero. Num ambiente já amplamente dominado pelo agenda do politicamente correto poucos são os que têm a coragem e a ousadia de contraditar os defensores dessas causas sem futuro, de desmentir seus argumentos capciosos, e de enfrentá-los na palavra e na escrita, se preciso nas ruas.
Os representantes do marxismo cultural, do gramscismo vulgar, da idiotice do politicamente correto podem ser contraditados por simples argumentos lógicos, e por demonstrações empíricas sobre como são inconsistentes seus argumentos, pelo fato de simplesmente não se adequarem à realidade do mundo presente, tal como ele é. Não é difícil encontrar argumentos corretos para desmontar os discursos e as propostas dos marxistas culturais, mas para isso é preciso que pessoas sensatas, ou simples amigas da verdade, se disponham a tomar da pena, ou do teclado, para assentar-lhes alguns golpes de realidade, não como fazia o jovem Marx na “Ideologia Alemã”, com base em argumentos puramente filosóficos, mas com base em relatórios, estudos, estatísticas.
O aspecto que eu mais destacaria na atualidade – revelador das expressões mais delirantes do politicamente correto, que tende a se espalhar no país, como várias outras tendências idiotas de nossa época –– é o do desmoronamento das instituições de ensino, seja pela influência nefasta das ideologias gramscianas amplamente dominantes nesses meios, seja pela ação quase mafiosa dos sindicatos de professores (sobretudo do ensino médio, mas também encontrável no terceiro ciclo), um processo que nos condena ao descalabro pedagógico e à mediocridade no desempenho educativo, incidindo, portanto, sobre o futuro previsível da produtividade em nosso país. Essa erosão da qualidade do ensino no Brasil – em praticamente todos os níveis, do pré-primário ao pós-doc – tem basicamente duas origens: de um lado o efeito nefasto da “pedagogia do oprimido”, uma herança nefasta daquele que foi elevado à condição de “patrono da educação brasileira” pelo regime companheiro, Paulo Freire, a quem considero o supremo idiota da “não educação” brasileira; de outro, a ascensão e o “empoderamento” – esse horrível conceito da terminologia politicamente correta – dos sindicatos de mestres e de professores, o que aliás corresponde inteiramente à ideologia predominante durante o regime petista, que foi uma repetição mais bem sucedida da natimorta “República Sindical” do início dos anos 1960.
De certa forma, ainda vivemos sob a “República Sindical”, e ela é evidente no corporativismo exacerbado sob o qual vivemos, a partir de um Estado omnipresente e onipotente (mas obviamente não onisciente). Na outra ponta, a organização pedagógica brasileira ainda é dominada pela ideologia do “freirismo” educacional, um conjunto de banalidades políticas – de inspiração maoísta, cabe esclarecer – que desvinculam o ensino brasileiro de suas funções básicas: formar as crianças e jovens no ensino da língua, das matemáticas e das ciências elementares. Os exames do PISA demonstram a total inconsistência, na verdade, o fracasso da educação brasileira, e isto é uma tragédia superior a qualquer crise fiscal ou recesso econômico.
O marxismo cultural representa um dos maiores desafios ao desenvolvimento do Brasil, na medida em que ele é uma tentativa de sobrevivência do socialismo, mas baseado em mentiras, meias verdades, diagnósticos simplistas da realidade, e prescrições totalmente equivocadas para a solução dos nossos problemas. Um dos exemplos mais evidentes dessas tendências nefastas é o chamado “afrobrasileirismo”, uma importação de teses já equivocadas em sua origem – a ideologia African American nos Estados Unidos – e que pode estar provocando o nascimento de um novo tipo de Apartheid no Brasil, o que separa os supostos “afrodescendentes” de todos os demais brasileiros; considero ser meu dever intelectual, me contrapor aos desatinos dessas concepções anti-meritocráticas, em defesa de uma concepção mais elevada da sociedade e da cultura brasileira.
O combate apenas começou: ele precisa ser continuado, se não quisermos soçobrar na mediocridade intelectual e no atraso mental que caracteriza, infelizmente, nossas elites. O meu combate é este: o da racionalidade econômica, o da qualidade da educação e o da defesa da dignidade da pessoa humana em face do primitivismo das causas particularistas que estão fragmentando o conceito de direitos humanos nos últimos anos. Não tenho nenhuma hesitação em fazer a defesa da verdade política, do sentido não corporativo das políticas públicas, da noção correta de bem comum, contra o assalto dos “novos bárbaros” gramscianos contra a sociedade e o Estado no Brasil. Não é fácil, mas não se pode renunciar a certos imperativos de consciência.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 21 de março de 2018 

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