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sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Declaração do Brasil na sessão do CSNU que não aprovou o projeto brasileiro de Resolução sobre a guerra Hamas-Israel - Sérgio França Danese (NY)

 Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Comunicação Social

 

Nota nº 473

18 de outubro de 2023

 

 Declaração do Representante Permanente do Brasil na ONU sobre a proposta de resolução S/2023/773, sobre a crise israelo-palestina

 

Statement by His Excellency, Ambassador Sérgio França Danese, Permanent Representative of Brazil to the United Nations

 Draft resolution S/2023/773, Security Council

(Versão original em inglês)

 

At last Friday's closed consultations, Council members asked for Brazil's leadership, in our capacity as presidency in October, to facilitate a Council response to the escalating crisis in Israel and Palestine, in particular its humanitarian aspects.

We heeded the call with a sense of urgency and responsibility. In our view, the Council had to take action and do so very quickly. Council paralysis in the face of a humanitarian catastrophe is not in the interest of the international community.

Therefore, throughout last weekend and the following days, we worked very hard, through extensive and collaborative engagement with Council members, to help build a unified position.

While making a good faith effort to accommodate different - sometimes opposing - positions, our focus was and remains on the critical humanitarian situation on the ground. Political realism guided us, but our sight was always set on the humanitarian imperative. Exactly as in other very sensitive files on the Council”s agenda in which Brazil had a special role to play, international humanitarian law and human rights law provided a clear framework for action.

Our proposed text unequivocally condemned all forms of violence against civilians, including the heinous acts of terrorism by Hamas and the taking of hostages. It called for their immediate and unconditional release. It also called on all parties to strictly abide by their international legal obligations, in particular those relating to the protection of civilians, civilian infrastructure and humanitarian personnel. The draft resolution also stressed the urgent need for humanitarian access to civilians.

The text incorporated urgent and multiple calls by the UN and many other actors for humanitarian pauses to allow for the delivery of aid and the voluntary safe passage of civilians. It encouraged the establishment of humanitarian corridors and other mechanisms to facilitate the smooth delivery of aid.

The draft further reflected the ethical necessity to provide civilians in Gaza with electricity, water, fuel, food and medical supplies. The necessity to be protected from forced relocation when the prevailing conditions on the ground do not ensure a safe and secure displacement.

Thus, faced with heinous terrorist acts against Israeli civilians, with the forceful reaction to such acts and an ever growing humanitarian disaster imposed on Gaza, the Council response we proposed was robust and balanced.

We are grateful to all Council members who engaged with us since last Friday and demonstrated a sincere and practical commitment to multilateralism.

Sadly, very sadly, the Council was yet again unable to adopt a resolution on the Israeli-Palestinian conflict. Again, silence and inaction prevailed.

To no one's true, long-term interest.

While we deeply regret that collective action is made impossible in the Security Council, we do hope that efforts by other actors will yield positive results.

They must be prompt, effective and substantial. Hundreds of thousands of civilians in Gaza cannot wait any longer. Actually, they have waited for far too long. To no avail.

I thank you.

 

* * * * 

 

Declaração do Representante Permanente do Brasil na ONU, Embaixador Sérgio França Danese, sobre a proposta de resolução S/2023/773, sobre a crise israelo-palestina

Versão em português 

 

Nas sessões de consultas fechadas da sexta-feira passada, os membros do Conselho requisitaram a liderança do Brasil, como presidente de turno no mês de outubro, para facilitar uma resposta do Conselho à escalada da crise em Israel e na Palestina, em particular seus aspectos humanitários.

Nós atendemos ao chamado com um senso de urgência e responsabilidade. Em nossa opinião, o Conselho tinha de agir, e tinha de fazê-lo muito rapidamente. A paralisia do Conselho diante de uma catástrofe humanitária não é do interesse da comunidade internacional.

Portanto, durante todo o último fim de semana e nos dias seguintes, nós trabalhamos muito, mediante um engajamento amplo e colaborativo com os membros do Conselho, para ajudar a construir uma posição unificada.

Ao fazer um esforço de boa-fé para acomodar posições diferentes - às vezes opostas -, nosso foco esteve e continua a estar na grave situação humanitária no terreno. O realismo político nos orientou, mas a nossa a visão sempre esteve voltada para o imperativo humanitário. Exatamente como em outros dossiês sensíveis na agenda do Conselho, nos quais o Brasil cumpriu um papel especial, o direito internacional humanitário e o direito internacional dos direitos humanos forneceram parâmetros claros para a ação.

O texto que propusemos condenava inequivocamente todas as formas de violência contra civis, inclusive os atos hediondos de terrorismo por parte do Hamas e a tomada de reféns. O texto conclamava à libertação imediata e incondicional desses reféns. Também conclamava todas as partes a cumprirem rigorosamente as suas obrigações internacionais, em particular as relacionadas com a proteção de civis, infraestrutura civil e pessoal humanitário. O projeto de resolução também salientava a necessidade urgente de acesso humanitário aos civis.

O texto incorporava apelos múltiplos e urgentes da ONU e de muitos outros atores em prol de pausas humanitárias para permitir a entrega de ajuda e a passagem voluntária e segura de civis. Encorajava o estabelecimento de corredores humanitários e outros mecanismos para facilitar a prestação de ajuda humanitária sem obstáculos.

O projeto refletia ainda a necessidade ética de fornecer aos civis em Gaza eletricidade, água, combustível, alimentos e suprimentos médicos. A necessidade de serem protegidos contra deslocamentos forçados quando as condições no terreno não garantem um deslocamento seguro.

Assim, confrontados com atos terroristas hediondos contra civis israelenses, com a forte reação contra tais atos e com um desastre humanitário cada vez maior imposto sobre Gaza, a resposta que propusemos para o Conselho foi robusta e equilibrada.

Somos gratos a todos os membros do Conselho que se engajaram conosco desde sexta-feira passada e demonstraram um compromisso sincero e prático com o multilateralismo.

Infelizmente, muito infelizmente, o Conselho foi mais uma vez incapaz de adotar uma resolução sobre o conflito israelo-palestino. Mais uma vez, o silêncio e a inação prevaleceram.

Algo que não serve ao interesse verdadeiro e de longo prazo de ninguém.

Embora lamentemos profundamente que a ação coletiva tenha se tornado impossível no Conselho de Segurança, esperamos que os esforços de outros atores possam produzir resultados positivos.

Eles devem ser rápidos, eficazes e substanciais. Centenas de milhares de civis em Gaza não podem esperar mais. Na verdade, eles já esperaram demais. E em vão.

Obrigado.

 

[Nota publicada em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-do-representante-permanente-do-brasil-na-onu-sobre-a-proposta-de-resolucao-s-2023-773-sobre-a-crise-israelo-palestina 

domingo, 26 de março de 2023

Depoimento do historiador Timothy Snyder no CSNU sobre as atrocidades cometidas contra russos e ucranianos - Dagobah

 Introdução PRA:

As atrocidades que estão sendo cometidas pelo ESTADO russo na Ucrânia, e também contra o seu próprio povo, na Rússia, ao negar-lhe as verdades sobre a guerra de agressão e seus horrores, a matança dos próprios russos na Ucrânia, seja de soldados convocados para a invasão, seja de russo-ucranianos vivendo no território invadido e em outras localidades, tudo isso, como relatado pelo historiador da Rússia Timothy Snyder, deveria ser ponderado pela DIPLOMACIA BRASILEIRA em seu posicionamentos sobre como o presidente do Brasil deveria se manifestar a respeito dessa guerra terrível que compromete o futuro da Europa e também do mundo. 

Além das atrocidades que estão sendo perpetradas pelas forças russas que atacam continuamente a Ucrânia, existe uma dimensão que não está sendo propriamente considerada na avaliação dos interesses do ESTADO brasileiro e do país como um todo em face desse conflito (que não é um simples conflito militar e sim uma guerra de aniquilação de um Estado e de um povo): essa dimensão, inescapável a qualquer indivíduo que recebe as terríveis notícias que nos chegam da Ucrânia, é a DIMENSÃO MORAL de todo esse assunto.

Pergunto: como se pode ser indiferente em face de todas essas ATROCIDADES?

Onde está a capacidade de ser humano, como se perguntava Primo Levi ao voltar de Auschwitz: SE ISSO É UM HOMEM?

Como se pode ser insensível a tudo isso?

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 26/03/2023


Timothy Snyder: Briefing do Conselho de Segurança das Nações Unidas


Se fazendo de vítima

Testemunho ao Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre o discurso de ódio russo

por Timothy Snyder, Thinking about: Snyder Substack (14/03/2023)

Tradução livre ao português por Zoia Luecht

(Este é o texto do meu briefing do Conselho de Segurança das Nações Unidas esta manhã, 14 de março de 2023, para uma sessão convocada pela Federação Russa para discutir “russofobia”. Se você quiser me citar exatamente como eu falei, talvez queira verificar o vídeo da sessão, que encontra-se disponível no texto original linkado nos comentários.)

Senhoras e senhores, venho diante de vocês como historiador da região, como historiador da Europa Oriental e, especificamente, como historiador de assassinatos em massa e atrocidades políticas. Fico feliz em ser convidado a informá-los sobre o uso do termo “russofobia” por atores estatais russos. Acredito que tal discussão pode esclarecer algo sobre o caráter da guerra de agressão da Rússia na Ucrânia e a ocupação ilegal do território ucraniano pela Rússia. Falarei brevemente e me limitarei a dois pontos.

Meu primeiro ponto é que os danos aos russos e o dano à cultura russa são, principalmente, resultado das políticas empregadas na Federação Russa. Se, realmente, estamos preocupados com os danos aos russos e à cultura russa, então devemos nos preocupar com as políticas empregadas pelo estado russo.

Meu segundo ponto: Será que o termo “russofobia”, que estamos discutindo hoje, foi explorado durante esta guerra como uma forma de propaganda imperial na qual o agressor afirma ser a vítima? Serviu no ano passado como justificativa para os crimes de guerra cometidos pelos russos na Ucrânia.

Deixe-me começar do primeiro ponto. A premissa, quando discutimos “russofobia”, é que estamos preocupados com os danos aos russos. Essa é uma premissa que eu certamente compartilho. Eu compartilho da preocupação com os russos. Eu compartilho da preocupação com a cultura russa. Lembremos, então, as ações do ano passado que causaram os maiores danos aos russos e à cultura russa. Citarei brevemente dez.

1. Forçando os russos mais criativos e produtivos a emigrar. A invasão russa na Ucrânia fez com que cerca de 750.000 russos deixassem a Rússia, incluindo algumas das pessoas mais criativas e produtivas. Este é um dano irreparável à cultura russa, e é o resultado da política russa.

2. A destruição do jornalismo russo independente para que os russos não possam conhecer o mundo ao seu redor. Isso também é política russa e causa danos irreparáveis à cultura russa.

3. Censura geral e repressão à liberdade de expressão na Rússia. Na Ucrânia, você pode dizer o que gosta em russo ou ucraniano. Na Rússia, você não pode.

Se você estiver na Rússia com uma placa dizendo “não à guerra”, você será preso e muito provavelmente preso. Se você estiver na Ucrânia com um sinal que diz “não à guerra”, independentemente do idioma em que esteja expressado, nada acontecerá com você. A Rússia é um país de apenas um idioma importante com o qual você pode dizer pouco. A Ucrânia é um país com dois idiomas onde você pode dizer o que quiser.

Quando visito a Ucrânia, as pessoas me relatam sobre os crimes de guerra dos russos usam um dos dois idiomas, seja o ucraniano ou seja o russo, como preferirem.

4. O ataque à cultura russa por meio da censura de livros escolares, enfraquecendo as instituições culturais russas em casa e a destruição de museus e organizações não governamentais dedicadas à história russa. Todas essas coisas são obras da política russa.

5. A perversão da memória da Guerra da Grande Pátria, travou uma guerra de agressão em 2014 e 2022, privando assim todas as gerações futuras de russos dessa herança. Essa é a política russa. Isso causou grande dano à cultura russa.

6. O rebaixamento da cultura russa em todo o mundo e o fim do que costumava ser chamado de “russkiy mir”, o mundo russo no exterior.

Costumava ser o caso de haver muitas pessoas que se sentiam amigáveis com a Rússia e a cultura russa na Ucrânia. Isso terminou por duas invasões russas. Essas invasões eram políticas do estado russo.

7. O assassinato em massa de falantes de russo na Ucrânia. A guerra de agressão russa na Ucrânia matou mais falantes de russo do que qualquer outra ação de longe.

8. A invasão da Ucrânia pela Rússia levou à morte em massa de cidadãos russos que lutavam como soldados em sua guerra de agressão. Cerca de 200.000 russos estão mortos ou mutilados. Esta é, e é claro, simplesmente a política russa. É política russa enviar jovens russos para que morram na Ucrânia.

9. Crimes de guerra, trauma e culpa. Esta guerra significa que uma geração de jovens russos, aqueles que sobrevirem, estarão envolvidos em crimes de guerra e estarão envolvidos em traumas e culpas pelo resto de suas vidas. Isso é um grande dano à cultura russa.

Todo esse dano aos russos e à cultura russa foi alcançado pelo próprio governo russo, principalmente no decorrer do último ano. Então, se estivéssemos sinceramente preocupados com os danos aos russos, essas são algumas das coisas em que pensaríamos. Mas talvez a pior política russa em relação aos russos seja a última, a décima.

10. O treinamento sustentado ou a educação dos russos para acreditar que o genocídio é normal. Vemos isso nas repetidas alegações do presidente da Rússia de que a Ucrânia não existe. Vemos isso em fantasias genocidas na mídia estatal russa. Vemos isso em um ano de televisão estatal atingindo milhões ou dezenas de milhões de cidadãos russos todos os dias. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como porcos. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como parasitas. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como vermes. Vemos isso quando a televisão estatal russa apresenta os ucranianos como satanistas ou como canibais. Vemos isso quando a televisão estatal russa proclama que as crianças ucranianas devem ser afogadas. Vemos isso quando a televisão estatal russa proclama que as casas ucranianas devem ser queimadas com as pessoas dentro. Vemos isso quando as pessoas aparecem na televisão estatal russa e dizem: “Eles não deveriam existir. Devemos executá-los por pelotão de fuzilamento.” Vemos isso quando alguém aparece na televisão estatal russa e diz “vamos matar 1 milhão, vamos matar 5 milhões, podemos exterminar todos vocês”, ou seja, todos os ucranianos.

Agora, se estivéssemos sinceramente preocupados com os danos aos russos, estaríamos preocupados com o que a política russa está fazendo aos russos. A alegação de que os ucranianos são “russófobos” é mais um elemento do discurso de ódio russo na televisão estatal russa. Na mídia russa, essas outras alegações sobre os ucranianos estão misturadas com a alegação de que os ucranianos são russofóbicos. Então, por exemplo, na declaração na televisão estatal russa em que o orador propôs que todos os ucranianos fossem exterminados, seu raciocínio era que todos eles deveriam ser exterminados porque exibem a “russofobia”.

A alegação de que os ucranianos têm que ser mortos porque têm uma doença mental conhecida como “russofobia” é ruim para os russos, porque os educa no genocídio. Mas é claro que tal afirmação é muito pior aos ucranianos.

Esta é uma foto que tirei no porão da escola em Yahidne, na região de Chernihiv, na Ucrânia. Em Yahidne, os ocupantes russos mantinham toda a população da aldeia no porão da escola. Algumas pessoas foram executadas, outras morreram de exaustão. O texto nela diz “59 crianças”; eram quantas crianças que estavam entre aquelas pessoas presas em um espaço muito pequeno. No térreo da escola haviam grafites russos repetindo slogans da propaganda de televisão, por exemplo, que os ucranianos são o “diabo”.

Isso me leva ao meu segundo ponto. O termo “russofobia” é uma estratégia retórica que conhecemos das histórias dos imperialismos.

Quando um império ataca, o império afirma que é a vítima. A retórica de que os ucranianos são de alguma forma “rusófobos”, está sendo usada pelo estado russo para justificar uma guerra de agressão. A linguagem é muito importante. Mas é o ambiente em que é usado que mais importa. Este é o cenário: a invasão russa da própria Ucrânia, a destruição de cidades ucranianas inteiras, a execução de líderes ucranianos locais, a deportação forçada de crianças ucranianas, o deslocamento de quase metade da população ucraniana, a destruição de centenas de hospitais e milhares de escolas, o ataque deliberado ao abastecimento de água e calor durante o inverno. Esse é o cenário da invasão russa na Ucrânia. Isso é o que realmente está acontecendo.

O termo “russofobia” vem sendo usado neste cenário afim de promover a alegação de que o poder imperial é que é a vítima, mesmo que o poder imperial, a Rússia, esteja realizando uma guerra de atrocidades. Este é um comportamento historicamente típico. O poder imperial desumaniza a vítima real e afirma ser a vítima. Quando a vítima (neste caso a Ucrânia) se opõe a ser atacada, assassinada, a ser colonizada, o império diz que querer ser deixado em paz é irracional, é uma doença. Isso é uma “fobia”.

Essa alegação de que as vítimas são irracionais, de que são “fóbicas”, de que têm uma “fobia”, destina-se a desviar a atenção da experiência real das vítimas no mundo real, que é uma experiência, e é claro, de agressão de guerra e atrocidade. O termo “russofobia” é uma estratégia imperial destinada a mudar o assunto de uma guerra real de agressão para os sentimentos dos agressores, suprimindo assim a existência e a experiência das pessoas mais prejudicadas. O imperialista diz: “Somos as únicas pessoas aqui. Somos as verdadeiras vítimas. E nossos sentimentos feridos contam mais do que a vida de outras pessoas.”

Agora, os crimes de guerra da Rússia na Ucrânia podem ser e serão avaliados pela lei ucraniana, porque ocorrem em território ucraniano, e pelo direito internacional. A olho nu, podemos ver que há uma guerra de agressão, crimes contra a humanidade e de genocídio.

A aplicação da palavra “russofobia” neste cenário, a alegação de que os ucranianos estão mentalmente doentes em vez de que estão passando por uma atrocidade, é retórica colonial. Serve como parte de uma prática mais ampla no discurso de ódio. É por isso que esta sessão é importante: ela nos ajuda a ver o discurso de ódio genocida da Rússia. A ideia de que os ucranianos têm uma doença chamada “russofobia” é usada como um argumento para destruí-los, juntamente com os argumentos de que são eles os vermes, os parasitas, os satanistas e assim por diante.

Afirmar ser a vítima quando você é de fato o agressor não é uma defesa. Na verdade,a alegação faz parte do crime. O discurso de ódio dirigido contra os ucranianos não faz parte da defesa da Federação Russa ou de seus cidadãos. É um elemento dos crimes que os cidadãos russos estão cometendo em território ucraniano. Nesse sentido, ao convocar esta sessão, o estado russo encontrou uma nova maneira de confessar crimes de guerra. Obrigado pela sua atenção.

(Eu então falei uma segunda vez, em resposta a uma pergunta do representante russo. Novamente, se você quiser me citar diretamente, talvez queira consultar o vídeo, que está aqui. Como a consulta era sobre fontes, adicionei alguns links, por conveniência. Eles não eram elementos da minha apresentação.)

Obrigado, Sr. Presidente. Foi um prazer estar com você e entre os diplomatas. O representante russo achou por bem me pedir fontes, e estou muito feliz em ajuda-lo.

Se estamos preocupados com fontes de declarações de altos funcionários da Federação Russa, encaminho o representante russo para o site do Presidente da Federação Russa. Lá ele encontrará discursos do presidente da Federação Russa negando que a Ucrânia existe com base no fundamento de que a Ucrânia foi inventada pelos nazistas, negando que a Ucrânia existe com base no fundamento de que foi inventada pelos comunistas e negando que a Ucrânia existe com o fundamento de que um viking foi batizado há mil anos. Eu não comento aqui sobre a validade histórica ou a lógica desses argumentos. Eu simplesmente aponto que esta é uma questão de registro público, que estas são as declarações do Presidente da Federação Russa. Da mesma forma, Dmitri Medvedev, membro do Conselho de Segurança Russo, em seu canal no telegram, oferece repetidamente o tipo de linguagem genocida que foi discutida aqui hoje.

Com relação às fontes na televisão estatal russa. Isso é muito simples. Eu estava citando a televisão estatal russa. A televisão estatal russa é um órgão do estado russo. Como o próprio presidente da Federação Russa disse, a televisão estatal russa representa os interesses nacionais russos. As declarações feitas na televisão estatal russa e em outros meios de comunicação estatais, portanto, são significativas, não apenas como expressões da política russa, mas também como uma marca de motivação genocida à população russa. Isso é verdade a tal ponto que os próprios apresentadores da televisão russa se preocuparam em voz alta com a possibilidade de serem processados por crimes de guerra. Então eu encaminho o representante da Federação Russa para os arquivos de vídeo dos canais de televisão estaduais da Rússia. Para aqueles de vocês que não sabem russo, eu os refiro ao excelente trabalho de Julia Davis. Julia Davis montou um arquivo de material de vídeo russo relevante.

Se as fontes em questão são sobre as atrocidades russas reais na Ucrânia, elassão bem conhecidas e foram abundantemente documentadas. A coisa mais simples para o estado russo fazer seria permitir que jornalistas russos relatassem livre e diretamente da Ucrânia. Para todos os outros, a coisa mais simples a fazer seria visitar a Ucrânia, uma terra que tem um presidente bilíngue, democraticamente eleito, que representa uma minoria nacional e perguntem ao povo da Ucrânia sobre a guerra em ucraniano ou russo. Os ucranianos falam os dois e podem responder em ambos.

O representante da Federação Russa achou por bem atacar minhas qualificações. Eu tomo essa repreensão do estado russo como um distintivo de orgulho, já que é um elemento muito menor em um ataque maior à história e à cultura russas. Meu trabalho tem sido dedicado, entre outras coisas, a narrar o assassinato em massa de russos, inclusive no Cerco de Leningrado. Tenho orgulho ao longo da minha carreira de aprender com historiadores da Ucrânia, Polônia, Europa em geral e também com historiadores da Rússia. É lamentável que os principais historiadores da Rússia e os principais estudiosos da Rússia não tenham permissão para praticar ´livremente’ suas disciplinas em seu próprio país. É lamentável que organizações como o Memorial, que fizeram um trabalho heroico na história russa, agora sejam criminalizadas na Rússia.

Também é lamentável que as leis de memória na Rússia impeçam a discussão aberta da história russa. É lamentável que a palavra Ucrânia tenha sido banida dos livros escolares russos. Como historiador da Rússia, estou ansioso pelo dia em que possa haver uma discussão livre da fascinante história da Rússia.

Falando em história, o representante russo negou que existisse algo como a história da Ucrânia. Eu indicaria ao representante russo excelentes pesquisasfeitas por historiadores que conhecem tanto o ucraniano quanto o russo, como o trabalho recente do meu colega Serhii Plokhii em Harvard. Eu indicaria as pessoas em geral para minha aula abertasobre história ucraniana em Yale, que espero compartilhar o significado da história ucraniana de forma mais eloquente do que posso faze-lo aqui.

Mas fundamentalmente, gostaria de agradecer ao representante russo por me ajudar a fazer o ponto que eu estava tentando inclui-lo no meu briefing. O que tenho tentado dizer é que não é para o representante de um país maior dizer que o país menor não tem história. O que o representante russo acabou de nos dizer é que sempre que os ucranianos, no passado ou no presente, afirmam que existem como sociedade, isso é “ideologia” ou “russofobia”.

O representante russo nos ajudou exemplificando o comportamento que eu estava tentando descrever. Como venho tentando dizer, descartar a história alheia, ou chamá-la de doença, é uma atitude colonial com implicações genocidas. O império não tem o direito de dizer que um país vizinho não tem história. A alegação de que um país não tem passado é discurso de ódio genocida. Ao nos ajudar a fazer a conexão entre palavras e ações russas, esta sessão foi útil. Obrigado.

Timothy Snyder em 14 de março de 2023

Obrigado por ler.

Este post é público, então sinta-se à vontade para compartilhá-lo.

DAGOBAH, por Augusto de Franco, a quem agradeço por viabilizar o acesso.

(PRA)


sábado, 10 de setembro de 2022

Entre impérios: EUA confirmam adesão aos seis princípios de atuação num CSNU responsável

Viva a grande potência imperialista e arrogante, mas defensora dos direitos humanos e dos grandes princípios do Direito Internacional e da Carta da ONU, começando por reformar o ABUSIVO direito de veto em defesa de suas próprias transgressões da Carta. Isso precisa acabar agora!

https://twitter.com/StateDept/status/1568622829473505282

Department of State on Twitter

Demorou para a maior potência mundial demonstrar engajamento real e efetivo (ainda a ser provado) pelos princípios e valores da Carta das Nações Unidas e do Direito Internacional- https://pic.twitter.com/VxlySEnGBI - Falta agora aderir ao TPI.

Department of State on Twitter


quarta-feira, 20 de abril de 2022

A guerra da Ucrânia e as sanções econômicas multilaterais - Paulo Roberto de Almeida

 Um paper para subsidiar uma palestra-debate, no dia 21/04/2022, 16hs

 
“A guerra da Ucrânia e as sanções econômicas multilaterais”, com sumário, anexo e bibliografia. Divulgado preliminarmente na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/77013457/A_guerra_da_Ucrânia_e_as_sanções_econômicas_multilaterais_2022_).

Palestra no Instagram: Transmissão via Instagram (21/04/2022; 16:00-17:06; link:

A guerra da Ucrânia e as sanções econômicas multilaterais 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para palestra-debate, em 21/04/2022, com membros do Instituto Direito e Inovação, dirigido pelo Prof. Vladimir Aras (www.idinstituto.com.br), via Instagram.  

 

Sumário: 

1. Introdução: dos motivos das guerras e suas consequências

2. O custo econômico das guerras e as sanções materiais que delas decorrem

3. A agressão da Rússia contra a Ucrânia e a postura do Brasil a esse respeito

4. O paradoxo das sanções econômicas contra a Rússia

Anexo: Tabela cronológica das sanções econômicas multilaterais: Liga das Nações e Conselho de Segurança das Nações Unidas

Bibliografia de referência 

 

1. Introdução: dos motivos das guerras e suas consequências

Como diria um filósofo brasileiro, mais para a via do humorismo sarcástico, o Barão de Itararé, “as consequências sempre vêm depois”. No caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, elas vieram quase simultaneamente, e praticamente no mesmo ritmo da invasão das tropas agressoras, ordenadas pelo déspota neoczarista Vladimir Putin. Não foi por falta de aviso: tanto o presidente Joe Biden, dos EUA, quanto diferentes líderes da União Europeia haviam alertado, por diferentes meios, diversas vezes e de maneira insistente, que se Putin concretizasse aquilo que ela anunciava que NÃO iria fazer, mas que já estava transparente em seu planejamento pré-invasão, os países ocidentais responderiam com fortes sanções ao agressor. Putin preferiu apostar na relativa inação das sanções anunciadas, ou viu nesses anúncios uma repetição das reações moderadas adotadas quando da invasão-surpresa da península da Crimeia, em 2014, e insistiu nessa postura mesmo quando o presidente americano praticamente anunciou a invasão algumas semanas antes que ela efetivamente ocorresse. Pois então, as consequências chegaram, e elas são relevantes.

Sanções econômicas e, de forma geral, os custos econômicos das guerras, em suas diversas formas, são especialmente significativos, para quaisquer economias envolvidas, pequenas, médias ou grandes. Tais questões devem, ou deveriam, fazer parte do cálculo econômico – em homens, em materiais, em recursos financeiros – dos dirigentes de um país, ao decidir empreender uma aventura militar, não importando muito o cálculo econômico para a parte agressora, uma vez que a intenção é a de, em primeiro lugar, vencer a capacidade de resistência do alvo visado, destruir sua vontade de se defender, em segundo lugar, e lograr, em terceiro lugar, os objetivos estabelecidos no planejamento iniciais. Independentemente, porém, de tais cálculos, o fato é que o custo econômico de qualquer guerra dever ser sempre confrontado à obtenção dos mesmos objetivos estratégicos por outras vias, se disponíveis. É por isso que os mais importantes estrategistas e teóricos da Arte da Guerra – de Sun Tzu a Clausewitz, sempre consideraram a guerra a continuidade da política por outros meios. 

As guerras são travadas por diferentes motivos, inclusive econômicos, visando conquista e dominação de novos territórios e seus recursos econômicos, vingança por algum diferendo político do passado, por motivos defensivos ou preventivos, ou por mais prosaicos motivos pessoais, de interesse restrito às lideranças, ou ao líder exclusivo, da potência agressora. Talvez se possa enquadrar neste último caso a famosa guerra de Troia, embora não seja nada provável que os gregos tenham cercado a fortaleza de seus vizinhos gregos, na Ásia Menor, durante dez anos contínuos, apenas devido ao rapto de Helena, a mulher do rei Menelau, da Lacedemônia (Esparta), por Paris. O mais provável é que a Helena não tenha tido nada a ver com o longo conflito, e que motivos mais propriamente econômicos tenham impulsionado Menelau e seus compatriotas gregos a se vingar de um antigo entreposto grego, fruto da expansão colonial dos desbravadores marítimos da península que projetou bases bem além do Helesponto e na direção das colunas de Hércules, criando com isso novos competidores no dinâmico comércio mediterrâneo, já explorado por fenícios e outros povos. O fato é que os gregos cercaram a cidade-fortaleza de Troia durante dez anos, sem sucesso, até que a astúcia de Ulisses permitiu romper as portas da cidade-murada, que foi então totalmente saqueada pelos ardilosos combatentes. 

Um dos primeiros exemplos históricos de sanções econômicas está relatado na história da guerra do Peloponeso, por Tucídides: ele se refere ao banimento de mercadores da cidade-porto de Megara de comerciar com Atenas, em 432 AC, o que foi um dos vários exemplos de iniciativas infelizes da grande cidade-Estado democrática que lhe acarretaram reveses diplomáticos que contribuíram para a vitória final de Esparta naquela longa guerra. Aliás, independentemente da especulação despropositada que fazem, atualmente, alguns acadêmicos americanos afetados pela paranoia dos generais do Pentágono, como Graham Allison, proclamando uma nova guerra do Peloponeso, desta vez entre a Esparta-China e a Atenas-EUA, o fato é que erros diplomáticos e sanções econômicas podem, realmente, produzir resultados catastróficos para partes em conflito. Em qualquer hipótese, considero esse livro, Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap? (2015), um dos maiores desserviços à causa da globalização contemporânea (ver a versão brasileira: Allison, 2020). Pretendo dedicar uma resenha-artigo para discutir o tremendo equívoco conceitual e histórico desse acadêmico – mais conhecido pela sua análise da crise dos mísseis soviéticos em Cuba em 1962, The Essence of Decision(1971) – na avaliação das relações atuais entre os dois gigantes econômicos da contemporaneidade, que ele imagina que pode levar a uma nova guerra entre impérios.

 

2. O custo econômico das guerras e as sanções materiais que delas decorrem

Todas as guerras possuem, acarretam, exigem custos econômicos, para todas as partes em conflito, as agressoras e as agredidas. Esses custos podem ser identificados em três conjuntos de encargos ou perdas: pela mobilização inicial em função da estratégia militar, ou seja, o desvio de recursos orçamentários e outros para fins unicamente destrutivos, o que implica a retirada de capital humano das tarefas produtivas para as finalidades destrutivas; o “consumo” de meios militares para o ataque ou a defesa de bens, equipamentos, população e patrimônio social ou natural, ou seja, no curso das atividades militares; o “resultado” final ou intermediário dessas operações, em termos de destruição, eliminação ou impedimento parcial ou temporário dos recursos materiais e humanos, bens materiais destruídos, vidas perdidas ou levadas a tratamento hospitalar e possível incapacitação temporária ou permanente. 

(...)


Ler a íntegra neste link: 

https://www.academia.edu/77013457/A_guerra_da_Ucrânia_e_as_sanções_econômicas_multilaterais_2022_


segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

A postura da diplomacia brasileira continua VERGONHOSA! Não existe condenação da agressão: as partes são julgadas equivalentes

 Não vejo, EM NENHUM MOMENTO, nenhuma denúncia da invasão russa, da violação do Direito Internacional, dos crimes de guerra e contra os direitos humanos já perpetrados pelas tropas russas, inclusive NENHUMA REFERÊNCIA à ameaça de uso de ARMAS NUCLEARES.

A diplomacia brasileira continua INTIMIDADA pelos celerados, aloprados e desequilibrados dirigentes que infelicitam o Brasil e isolam o país no cenário internacional. 

VERGONHA! VERGONHA! VERGONHA!

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata e professor

Brasília, 27/02/2022


NOTA À IMPRENSA Nº 33

Declaração do Representante Permanente do Brasil junto às Nações Unidas, Embaixador Ronaldo Costa Filho, em reunião do Conselho de Segurança da ONU sobre a situação na Ucrânia - 27 de fevereiro de 2022 (texto em inglês)

Statement by the Permanent Representative Ambassador Ronaldo Costa Filho in the Security Council Debate on the Question of Ukraine

27 February 2022

Mr. President, 

Last Friday, my delegation laid out before this Council a comprehensive view of its concerns regarding the security developments in and around Ukraine.  Nothing in the intervening period has led us to having had those concerns allayed.

On the contrary, in fact. As we speak, the number of casualties, the human suffering and the risks to international peace and security keep increasing by the hour. UNHCR already places the number of refugees at 422,000.

We have voted in favour of the draft resolution before the Council despite misgivings about its timing and its contribution to achieving peace. These misgivings stem ultimately from our unyielding commitment of respect for, and interest in upholding, the Charter and the role of the Security Council itself.

The urgency of the situation has convinced us of the need to add the voice of the General Assembly to that of the Security Council in seeking solutions to the crisis in and around Ukraine.  

This in no way detracts from our firm belief that the Council, with its primary responsibility for the maintenance of international peace and security, has not yet exhausted the instruments and mechanisms at its disposal to contribute to a negotiated and diplomatic solution towards peace.

Therefore, we reiterate our call for an immediate cessation of hostilities, for full respect to humanitarian law, and for a renewed attempt within the Council for the promotion of, and support to, a process of dialogue between the parties involved, a role that the Council is inherently better equipped to provide in order to bring a peaceful solution to the Ukrainian conflict. The Security Council and General Assembly must work together.

As we renew our calls for an immediate ceasefire, we also appeal to Ukraine and Russia to facilitate the withdrawal of all persons who want to leave the Ukrainian territory. Brazil already wishes to express its gratitude to Poland, Slovakia, Hungary, Moldova, Romania and others who are facilitating the exit of people fleeing the conflict, in particular Brazilians and Latin Americans. 

Let us be exceedingly cautious in moving forward in the General Assembly. The supply of weapons, the recourse to cyberattacks, and the application of selective sanctions, which could affect sectors such as fertilizers and wheat, with a strong risk of famine, entail the risk of exacerbating and spreading the conflict and not of solving it. We cannot be oblivious to the fact that these measures enhance the risks of wider and direct confrontation between NATO and Russia. It is our duty, both in the Council and in the General Assembly, to stop and reverse this escalation. We need to engage in serious negotiations, in good faith, that could allow the restoration of Ukraine's territorial integrity, security guarantees for Ukraine and Russia, and strategic stability in Europe. 

I thank you.

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PRA: I do NOT thank you, Mister Costa, but I regret that you have to comply to INSANE instructions from Brasília.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Não foi a antidiplomacia de Bolsonaro que fez o Brasil voltar ao CSNU - Hussein Kalout (OESP)

O retorno do Brasil ao Conselho de Segurança da ONU: é preciso contar a verdade; leia o artigo


Não foi o governo Bolsonaro que articulou a volta do Brasil ao Conselho de Segurança, e é um acinte dizer que este retrono é um 'eixo da política externa' de um Presidente que sempre desprezou a ONU
       
Hussein Kalout*, O Estado de S.Paulo
03 de janeiro de 2022

“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” – (Mateus 22:21). 

Sobre o retorno do Brasil ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), para o exercício de mandato de dois anos (2022-2023), é preciso contar esse conto por inteiro para preservar a verdade histórica e o apego aos fatos. Mais do que contar a verdade, compele irromper o festival de distorções apregoados pelo Presidente e seu governo em torno desse assunto.

Política externa é política pública complexa e multifacetada, de difícil compreensão pelo público em geral. Normalmente, o debate fica restrito a círculos muito específicos, que, se mal-intencionados, conseguem facilmente manipular e distorcer a natureza do jogo diplomático para fins politiqueiros.

Em vez de explicar os seus intrincados meandros, com a atenção necessária a períodos pretéritos capazes, ao percurso do processo decisório, ao conjunto de ações engendradas e à racional estratégica por trás de cada passo, pode-se facilmente criar percepções imprecisas com base num fato descontextualizado. O resultado é a subversão da verdade.

É direito inalienável do povo, do parlamento e dos centros de conhecimento saberem como se deu, verdadeiramente, o retorno o Brasil ao órgão mais relevante das Nações Unidas. Nesse sentido, urge reestabelecer a verdade, para que aqueles que trabalham com o tema (política externa) não caiam, enfim, em armadilhas retóricas, narrativas fabricadas e distorções interesseiras.

Descortinar a bizarra fábula que vem sendo sustentada pelo Presidente, pelos seus múltiplos auxiliares na área internacional e por alguns meios de comunicação, é imperativo para que as novas gerações saibam o que o Itamaraty fez pelo país no passado-recente – antes da chegada deste desgoverno.

Não foi o governo Bolsonaro que articulou a volta do Brasil ao Conselho de Segurança – clube de elite da cúpula geopolítica da ONU. É estapafúrdia e risível a tese espalhada pelos corredores da República de que o Brasil foi eleito para compor o CSNU como forma de reconhecimento “ao prestígio internacional” do governo de Jair Bolsonaro. É igualmente um acinte sem precedente dizer que a volta do Brasil ao CSNU é um eixo da política externa de um Presidente que sempre desprezou a ONU, tendo ameaçado até mesmo abandonar a organização.

A verdade histórica e os fatos são os seguintes, caros leitores:

1. A escolha de um país para integrar o Conselho de Segurança da ONU se dá por meio de uma “eleição negociada” e rotativa no âmbito de cada um dos cinco Grupos Regionais das Nações Unidas. O Grupo de Países da América Latina e Caribe, conhecido no jargão diplomático de GRULAC (criado em 1964 e formado por 33 Estados Membros), é o foro apropriado onde o Brasil apresenta a sua postulação. Após a escolha regional, a indicação segue para uma ratificação burocrática em votação no âmbito da Assembleia Geral da ONU.

2. Entre 2012 e 2014, no primeiro governo Dilma, o Brasil acabou não apresentando a sua candidatura no âmbito do GRULAC e isso fez com o que o país parasse, por assim dizer, no final da fila. O nosso turno de retornar o Conselho, somente, se daria, lá para 2033 – seria um hiato de 22 anos já que o Brasil ocupara uma das vagas rotativas no biênio 2010-2011.

3. No início do segundo governo Dilma, entre 2015 e 2016, o Itamaraty inicia um processo de diálogo com países da região com o objetivo de encurtar esse hiato. Nesse período, o então ex-chanceler Mauro Vieira, passou a prospectar quais países estariam propensos a ceder ao Brasil a sua vaga mediante apoio para outras posições-chave no âmbito do sistema das Nações Unidas. República Dominicana, São Vicente e Granadinas e Honduras foram identificados como potenciais países.

4. Abriram-se sondagens então com os três países em diferentes estágios e a partir de estratégias específicas. República Dominicana sinalizou que não pretendia ceder a sua posição – face a supostas pressões advindas de Washington. O foco prioritário passou a ser São Vicente e Granadinas. Porém, a crise política no Brasil interrompeu o ciclo de conversas e posteriormente, o país caribenho, que havia recebido forte apoio da Venezuela, decide seguir com a vaga. Restava como opção: Honduras.

5.  Em meados de 2016, o Embaixador Mauro Vieira é indicado pelo governo Temer para assumir o posto de Representante Permanente do Brasil junto à ONU, em Nova York. Assume o Itamaraty o Senador José Serra, por uns nove meses e, posteriormente, é sucedido pelo então Senador Aloysio Nunes Ferreira na chefia da Chancelaria brasileira. Com Aloysio Nunes Ferreira, o processo de negociação com parceiros caribenhos e latino-americanos avança – por volta de abril de 2017. Além de Honduras, outras possibilidades passam a ser estudadas.

6.  Em representação ao GRULAC estariam, a princípio, no CSNU, Bolívia (biênio 2017-2018), República Dominicana (biênio 2019-2020), São Vicente e Granadinas (biênio 2020-2021), México (biênio 2021-2022) e Honduras (biênio 2022-2023). Ao pisar em Nova York para assumir as suas novas funções, o Embaixador Mauro Vieira abre um diálogo direito nos bastidores com a Representante Permanente de Honduras na ONU, Mary Elizabeth Flores Flake, no intuito de testar a flexibilidade política de Tegucigalpa. Ao largo dos meses subsequentes, o diálogo entre Vieira e Flores Flake avança ao ponto em que, a parte hondurenha, revela a intenção do país centro-americano de postular a Presidência da 73˚AGNU.

7. Naquele momento, Honduras cogitava lançar a própria Flores Flake para a Presidência da Assembleia Geral da ONU – mandato que se estenderia de setembro de 2018 à setembro de 2019 – e, para que a empreitada hondurenha ganhasse robustez, o apoio do Brasil no âmbito da América Latina se caracterizava como indispensável.

8. No primeiro trimestre de 2018, o diálogo nos bastidores entre Brasil e Honduras ganha concretude e após intenso processo de negociação, a chancelaria brasileira decide franquear o seu apoio a Honduras em troca da vaga para o CSNU. Selado o acordo, em junho de 2018, Flores Flake disputa a Presidência da 73˚AGNU com a então chanceler do Equador, María Fernanda Espinosa, que acaba levando o pleito.

9. É importante sublinhar que o Brasil não teve que disputar com nenhum outro país do GRULAC a vaga para o CSNU para o biênio 2022-2023. O acordo selado entre Brasil e Honduras, em 2018, foi respaldado e respeitado por todos os países latino-americanos e caribenhos. Quando, em junho de 2021, o Brasil teve a sua indicação confirmada pela Assembleia Geral, o país era candidato único do GRULAC para a vaga. Tratava-se de um regresso ao Conselho de Segurança com o cronômetro rodando em contagem regressiva e com data certa para se concretizar. Ou seja, não se tratou de diretriz nenhuma do governo Bolsonaro.

Infinitas inverdades sobre supostas “conquistas da política externa” hão de emergir neste ano eleitoral – decisivo para o futuro do Brasil. No mercado da ilusão, a usina de mentiras venderá para quem quiser crer, uma “política externa equilibrada”, enquanto o Brasil segue implementando a mesma política destrutiva no campo das relações internacionais. O padrão de voto do Brasil nos foros multilaterais segue sendo hoje o mesmo do início do governo em praticamente todas as áreas. Afinal, o Presidente é o mesmo, o governo é o mesmo e a “política externa” é, portanto, a mesma (com retoques cosméticos aqui ou ali no discurso. Uma mudança na estampa e não na essência).

Convém não esquecer que o governo Bolsonaro desmoralizou até a medula o nome do Brasil no sistema multilateral ao longo de seus três anos de governo – não apenas por atacar as próprias instituições do sistema das Nações Unidas, mas, por tentar, permanentemente, desacreditá-las.

Política de Estado não se faz com retóricas vazias, distorções dos fatos ou via “marquetagem infanto-juvenil”, seja para subverter a verdade, a história ou para contar um monte de contos da carochinha – sobre este e tantos outros temas. O fato é que a antecipação do retorno do Brasil ao CSNU abrangeu dois governos (Dilma e Temer) e foi realizado de forma meticulosa, silenciosa e estratégica, ao largo de quatro anos (2015-2018), em defesa do interesse nacional. Diga-se de passagem, aliás, que a agressividade do governo Bolsonaro contra o multilateralismo e especialmente contra vários países da América Latina colocaram todo o trabalho feito sob enorme risco. O Brasil acabou eleito porque os demais países respeitam acordos firmados e tradições, ou seja, fomos eleitos não por causa do atual governo, que nada teve a ver com a história, mas apesar desse governo.

No charlatanismo diplomático do governo apenas acredita quem quer!

* HUSSEIN KALOUT, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais, e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018).

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,o-retorno-o-brasil-ao-conselho-de-seguranca-da-onu-e-preciso-contar-a-verdade-leia-o-artigo,70003940455