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sábado, 5 de agosto de 2023

Justiça pode estar matando a democracia em nome da defesa da democracia - Fernando Schüler (Veja)

 Anatomia de um instante

Fernando Schüler, Revista Veja (05/08/2023)

Ninguém está acima dos direitos inscritos na Constituição

Sempre gostei das histórias malditas, dos personagens improváveis, que por alguma razão se perdem por aí. Um desses personagens é um comediante chamado Bismark Fugazza, e sua história nos dá um flash do transe brasileiro atual. Fugazza e um colega haviam denunciado o ministro Alexandre de Moraes à Corte Interamericana de Direitos Humanos, por violar os “direitos de liberdade de expressão” no país, com “várias prisões” e “multas desproporcionais” sem o devido processo legal. Foi preso no Paraguai, com direito a uma operação internacional e a fechar por alguns minutos a Ponte da Amizade, e passou três meses em cana. O motivo é o de sempre, as “ameaças à democracia” e coisas afins. Na cobertura do caso, quase nenhuma, o carimbo “influenciador bolsonarista” parece resumir a questão. O relatório da Polícia Federal sobre o seu caso foi taxativo: “Não foi possível evidenciar, de maneira minimamente razoável, que Fugazza tenha promovido atos atentatórios às instituições democráticas no 8 de Janeiro”.

Casos como este se tornaram a mais perfeita banalidade por aqui. Um dos mais curiosos foi o do youtuber Monark, banido das redes sociais por espalhar “desinformação” sobre o processo eleitoral. “A gente vê o TSE censurando gente”, disse ele, “e impedindo a transparência das urnas? Você fica desconfiado. Que maracutaia está acontecendo nas urnas ali?”. Foi banido, e logicamente é inútil perguntar se há alguma lei no país tipificando um crime de “desconfiança”. Monark simplesmente deu sua opinião, na forma de uma pergunta perdida em meio a uma conversa fiada, ademais perfeitamente irrelevante, com a qual cada um pode ou não concordar.

Não faço ideia se alguém seriamente acredita que reprimir essas pessoas atende a algum imperativo de “defesa da democracia”. Desconfio que não. As eleições já vão longe, há um certo cansaço disso tudo, e de certa forma o ministro Barroso matou a charada naquele discurso sem muitos rodeios, no Congresso da UNE. “Derrotamos o bolsonarismo.” Ponto. Difícil ir mais longe nesta análise. A esta altura do jogo, não acho que valha muito a pena fazer longas considerações sobre o sentido do estado de direito, sobre o quanto é absurdo e inaceitável que a Justiça tome partido, que direitos individuais sejam tão escrachadamente violados, que a censura prévia seja banalizada, e tudo o que todos estão cansados de saber. Ainda por estes dias lia um belo texto referindo-se à visão do grande Isaiah Berlin sobre o sentido da liberdade, no mundo político. A ideia de que “só ela era capaz de respeitar nossas almas divididas e o conflito sem fim entre nossos objetivos e valores”. Berlin fala do aprendizado moderno que vem de Montaigne, de John Locke, e cuja síntese é: não concordamos com as ideias uns dos outros, nossos deuses se opõem e nossos valores são frequentemente incompatíveis entre si. E, apesar disso, precisamos viver juntos. O que só é possível se a regra do jogo for dada pela liberdade, pelo respeito à regra imparcial, pelo mais amplo direito à expressão. Do contrário, resta a violência. Resta ficar prendendo comediantes e palpiteiros por aí, como em uma máquina que subitamente ganha vida própria.

Diante do estado de coisas a que chegamos, há diferentes atitudes. A primeira é dos entusiastas. A turma que saliva por entre os caninos a cada inimigo banido, preso, seja o que for. Dias atrás li um desses. “Não é hora de recuar”, berrava, abusando dos pontos de exclamação. É difícil saber o tamanho exato dessa turma, mas ela parece majoritária, nos meios de opinião. Para essas pessoas, coisas como “estado de direito” ou “tipificação legal” não passam de conversa pra boi dormir, como escutei de um ativista, em um dia nervoso. Desde que o mundo é mundo, a paixão militante soube justificar qualquer coisa. Não conheço um só episódio, na história, em que se praticou a censura em nome da censura. Os motivos sempre foram os melhores. A nação, a liberdade, a própria democracia. Não há propriamente originalidade no caso brasileiro.

A segunda atitude é a do medo. Quando um deputado é banido das redes, por uma decisão de ofício, qual o efeito que isso produz em seus pares? Quando os constituintes criaram o estatuto da imunidade parlamentar, era exatamente para que um deputado pudesse falar sem medo. Vale o mesmo para o jornalismo, e para qualquer cidadão, que ganhou o poder de palpitar em uma rede social. Nos tornamos a democracia do chilling effect, o “efeito inibidor”. O jurista ilustre para quem você liga lhe dá uma visão bastante crítica sobre todos esses temas, mas ao final diz, algo constrangido, “só não me cite, por favor”.

Ainda outra atitude, cada vez mais comum: a indiferença. A agressão a direitos, em um primeiro momento, causa indignação. Sua repetição, porém, nem tanto. Torna-se status quo, e vamos nos ajustando. Isso é comum em longas ditaduras. Alguém por acaso dá bola para presos políticos cubanos? Acompanho seu drama, em sites precários, aos quais ninguém mais presta muita atenção. Em democracias que deslizam para o iliberalismo, isto não é muito diferente. Baniram o Guilherme Fiuza? Aquele que escreveu Meu Nome Não É Johnny? E daí? Pois é. Isto tem lá sua racionalidade. Bancar o herói, numa época difícil, pode ser uma atitude de risco. Melhor ficar escondido, por aí, nos grupos de WhatsApp, mudando de assunto, apostando em alguma forma de autoengano.

Há ainda uma última atitude, dada pela insistência calma em certos princípios. Não é preciso ser nenhum herói para fazer isso. Basta fica de pé. Resistir ao frenesi militante e suas bizarrices, e a toda forma de abuso de poder. Sobre isso há uma lição magistral de Javier Cercas, em seu Anatomia de um Instante, que durante bom tempo foi meu livro de cabeceira. O livro é uma crônica da política espanhola dos anos 1980, época de transição, depois da ditadura franquista. Em um dado momento, há uma tentativa de golpe. Seu líder é o coronel Antonio Tejero, um tipo que parece saído de uma novela de Vargas Llosa. Ele invade o parlamento e mantém sua pantomima por uma madrugada inteira, até se entregar, no dia seguinte. Cercas escreve seu livro a partir de uma fotografia feita no exato instante em que Tejero invade o parlamento e abre fogo contra os deputados. A imensa maioria se esconde embaixo das cadeiras. Permanecem imóveis apenas três parlamentares, entre eles Adolfo Suárez, sentado, calmo e impassível, na primeira fila. “Não achei que ficaria bem para um líder de governo atirar-se para baixo de uma cadeira”, ele diria, depois, recusando-se a atribuir a si qualquer traço de heroísmo.

É uma boa metáfora para o Brasil de hoje. Tanto lá, como aqui, não precisamos de heroísmo algum, apenas de pessoas que se disponham a ficar no mesmo lugar. Permanecer impassíveis, em meio ao transe coletivo, nos lembrando que a lei deve ser preservada, que a opinião, detestável que seja, deve ser livre, que ninguém está acima dos direitos inscritos na Constituição, que o juiz não pode entrar em campo para derrotar este ou aquele lado do jogo. Coisas elementares que definem uma boa democracia, e das quais definitivamente não deveríamos abrir mão.

sábado, 11 de dezembro de 2021

A luta pelo Direito e pela Justiça não tem prazo (A OAB, a advocacia e os Jubilados em 2021) - Wagner Rocha D’Angelis

 A LUTA PELO DIREITO E PELA JUSTIÇA NÃO TEM PRAZO

[A OAB, a advocacia e os Jubilados em 2021]

 
Wagner Rocha D’Angelis [*]


RESUMO – O diploma de jubilamento, conferido aos advogados e advogadas que se dedicaram com galhardia, resiliência e longevidade ao exercício profissional e da cidadania, expressa uma meritória honraria para a classe e enaltece os homenageados. Em virtude de recente sessão de jubilamento da OABPR, na qual fui um dos diplomados, procuro neste texto sintetizar a importância ímpar da cerimônia e demonstrar a relação estreita entre o papel do advogado com o Estado Democrático de Direito, a advocacia dos direitos humanos, a solidariedade e a luta pela Justiça Social.

Palavras-chaves: Jubilamento advocatício; direitos humanos; estado democrático de direito; justiça social; lições de Alceu Amoroso Lima; homenagem a Wagner D’Angelis.

Sumário: 1. Introdução; 2. A OAB e a advocacia dos direitos humanos; 3. Os jubilados e o estado democrático de direito; 4. As lições de Alceu Amoroso Lima na luta pela justiça; 5. Conclusão – o exemplo do Dr. Alceu para os jubilados; 6. Referências.



1 - INTRODUÇÃO

Em solenidade festiva, realizada no seu grande auditório, na tarde do último dia 02 de dezembro de 2021, a OAB/Seccional do Paraná celebrou o jubilamento de 110 advogados e advogadas de Curitiba, que foram divididos em dois grupos por conta dos cuidados relativos à pandemia ainda vigente. Conduzida pelo ilustre ‘bâttonier’ da entidade paranaense, o advogado Cássio Lisandro Telles, a relevante iniciativa homenageou os profissionais jurídicos com trajetória ilibada e militância diuturna, que completaram 45 anos de atuação, ou, mesmo, que chegaram aos 70 anos de idade com 30 anos de inscrição na Seccional. Ver: Site da OABPR. In: https://www.oabpr.org.br/oab-parana-realiza-solenidade-de-jubilamento-para-advogados-de-curitiba/ (matéria publicada em 02/12/2021).

No evento vespertino, com início às 17 horas, além do atual presidente da seccional, se fizeram presentes na mesa dos trabalhos, o advogado José Lúcio Glomb, ex-presidente a OABPR, do Instituto dos Advogados do Paraná e também um dos jubilados, a secretária-geral adjunta Christhyanne Bortolotto, o diretor de Prerrogativas Alexandre Salomão, e, a coordenadora-geral da Escola Superior de Advocacia (ESA), Adriana D’Avila Oliveira.

 

Após exortar os agraciados – presentes nos plenários físico e também virtual - a terem orgulho de serem advogados (as), conscientes da grande missão social da classe, Telles enalteceu a importância daquela paradigmática sessão, que, costumeiramente, desde a edição do Provimento 111, de 12 de setembro de 2006, a OAB dedica aos integrantes registrados na Seccional, relembrando, ainda, que os operadores do direito “são defensores da justiça, da cidadania, da liberdade e do Estado Democrático de Direito”.


2 - A OAB E A ADVOCACIA DOS DIREITOS HUMANOS

 

Em seguida, já na segunda parte da festividade jubilatória, o presidente do colegiado paranaense pediu vênia para destacar que o evento estava sendo acompanhado, online, pelo advogado e professor universitário, com histórico de 45 anos de múnus público, Dr. Wagner Rocha D’Angelis, que na ocasião ainda se recuperava de uma complexa cirurgia (da coluna lombar), a quem reconheceu, na amplitude urbi et orbi, papel ativo e altivo enquanto dirigente de Ordem, principalmente louvando a lúcida, corajosa e intermitente atuação do Prof. D’Angelis na defesa peremptória dos direitos humanos, ao longo de quase meio século de inscrição profissional. Verhttps://www.youtube.com/ watch?v=7xT_3tOs27Q (Cerimônia de Jubilamento – Ativo Isento - 02/12/2021) - notadamente a partir de 2min50seg de execução. 

A partir desse momento, recordando que a comemoração toda estava sendo gravada, o presidente Telles fez questão de citar alguns dos relevantes papéis exercidos pelo advogado Wagner D’Angelis no âmbito da atividade diretiva institucional, enumerando várias de suas contribuições à seccional, desde quando ajudou a criar e  tornou-se membro titular da primeira Comissão Estadual de Direitos Humanos da OABPR, entre 1983 a 1985 (gestão Oto Sponholz), e assim de vários outros comitês subsequentes, além de secretário da mesma Comissão na gestão Alfredo de Assis Gonçalves Neto (1995-1997), presidente da Comissão Estadual de Direitos Humanos na gestão Edgard Luiz Cavalcanti de Albuquerque (1998-2000), Conselheiro Estadual (em dois mandatos), representante da OABPR na Comissão Especial de Indenização a Ex-Presos Políticos (Governo do Paraná / Decreto nº 3.485, de 20 de agosto de 1997 – até a 2003), representante da OABPR para investigação de violências cometidas contra agricultores, indígenas e expropriados por hidrelétricas, representante da OABPR na averiguação dos problemas enfrentadas por boias-frias e pequenos agricultores no Paraguai (caso “brasiguaios”), além de inúmeras palestras e debates para as quais foi designado por várias diretorias. 

Cabe noticiar, ainda, o que sequer foi preciso referenciar, porquanto uma honraria mais recente, que este jubilado compõe, já por três mandatos consecutivos (desde 2014), a Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OABPR (CEVIGE), a cujo respeito me permito abrir um parêntese para destacar o profícuo e coerente trabalho da CEVIGE, tida pelo autor como uma das mais dinâmicas e valiosas contribuições prestadas pela seccional à sociedade paranaense.

 

3 - OS JUBILADOS E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

 

Após concluir a parte laudatória de seu discurso em meu favor, o dr. Cássio Telles, lembrando que a seccional paranaense será pela primeira dirigida por uma mulher em toda a sua história (a advogada Marilena Indira Winter), fez questão de convidar uma advogada para também se pronunciar, cujo encargo recaiu na pessoa de Maria Lúcia Weinhardt, ex-presidente da subseção da Lapa, que relembrou das dificuldades instrumentais do exercício profissional nos anos 1970 até 1990, e, inclusive, enfatizou o pequeno número de mulheres que se formavam nos Cursos de Direito, algo que está sendo superado com o movimento de “feminização da advocacia” nas últimas décadas. Apesar da polêmica diferença notada no quesito mercado de trabalho e honorários advocatícios, o Conselho Federal noticiou, em abril deste ano (2021) que o número de advogadas passou a ser maior que o número de advogados no país [CF/OAB. Inhttps://www.conjur.com.br/2021-abr-27/numero-advogadas-supera -advogados-vez-brasil - matéria de 27/04/2021]. Além disso, o resultado final das eleições para diretorias e conselhos regionais neste ano de 2021 aponta, e isso é uma nova guinada positiva nesse quadro, que cinco das seccionais serão presididas por mulheres no triênio 2022-2024, a saber: São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Bahia e Mato Grosso.

 

Dando-se sequência ao ato público, a palavra foi passada ao ex-presidente José Lucio Glomb, que cumprimentou os homenageados em nome da OAB. Para o orador convidado, certamente “todos (os jubilados) estão orgulhosos da trajetória que construíram passo a passo. Os meus cumprimentos mais sinceros por terem essa dedicação e nunca terem deixado de ter fé no direito. Sigamos a nossa vocação”. Vale recordar que ao longo de seu mandato (triênio 2010-2012), o advogado Glomb encabeçou com outras lideranças a campanha “O Paraná que queremos”, de combate denodado contra a corrupção institucionalizada no âmbito da Assembleia Legislativa do Paraná, o que levou à criação da chamada Lei de Transparência (Lei 16.595/2021, depois complementada pelo Decreto Estadual 10.285/2014), texto originado da parceria entre a OAB/Paraná e a Associação Paranaense dos Juízes Federais (Apajufe). Por essa atuação, inclusive, a seção paranaense da OAB concedeu ao Dr. Glomb, em 11 de agosto de 2021, a Medalha Vieira Neto, a maior honraria local que se concede às personalidades que se destacam no exercício profissional. [Inhttps://www.gazetadopovo.com.br/parana/advogado-que-liderou-reacao-civica-ao-escandalo-dos-diarios-secretos-sera-homenageado/ - matéria publicada em  03/08/2021]

 

Voltando a fazer uso da palavra, o presidente Cássio Telles ainda ressaltou a importância dessa geração da advocacia que estava a receber o prêmio jubilatório. “Temos que reverenciar a memória, o trabalho, a luta de cada um. Todos vêm de muita dificuldade, vivíamos um Estado exceção, as liberdades eram patrulhadas e cerceadas. Foi a luta dos senhores e senhoras que fez voltarmos à democracia”, elogiou. “Todos nós que passamos por momentos difíceis em nome da preservação dessa memória temos de continuar sendo vigilantes”, advertiu o presidente da seccional.

 

Naturalmente, tais manifestações de elevado jaez, a nos deixar deveras envaidecidos, compelem-me a agradecer, sensibilizado, em meu nome e de tantos colegas jubilados, aos dirigentes da entidade representativa setorial, para o que escolhi por evocar as lições de vida e de atuação profissional do brilhante advogado cristão Alceu Amoroso Lima, seja por com ele me identificar, seja pela proximidade da sua data natalícia, 11 de dezembro, ele que nasceu no final do século XIX (1893). Como humanista, escritor, cientista político, educador, crítico literário, jornalista, pensador cristão, o dr. Alceu Amoroso Lima sobrevive no seu pseudônimo ou heterônimo de Tristão de Ataíde, uma das glórias da literatura nacional.

 

4 - AS LIÇÕES DE ALCEU AMOROSO LIMA NA LUTA PELA JUSTIÇA

Alceu, o lendário Tristão, sempre me serviu de imensa inspiração, notadamente em relação à advocacia dos direitos humanos. Paladino da causa da justiça e da democracia, Alceu esteve na trincheira da atividade jurídica, sem a banca convencional e sem peticionar no Foro, mas que se batia como poucos pela realização do direito e pela concretização da justiça, defensor com mandato tácito da sociedade civil nas questões das liberdades humanas básicas, que devem ser asseguradas por lei e que a esta se sobrepõem. A este respeito, ver: D’ANGELIS, Wagner Rocha. O advogado e os direitos humanos em Alceu Amoroso Lima. In: Jornal do Estado, Curitiba, 08 de outubro de 1993.

Tal qual Joaquim Nabuco, o advogado sem escritório que se bateu como poucos pela causa dos escravos, o dr. Alceu foi um advogado operante, sem cartão ou placa na porta é verdade, cujo escritório era sua vasta biblioteca, felizmente preservada, por obra e graça da prática do mecenato intrínseca às atividades do eterno reitor Cândido Antônio Mendes de Almeida, do Rio de Janeiro. Acerca do perfil e brilhantismo do prof. Mendes de Almeida, que ajudou a fundar e presidiu por longo tempo o Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade (CAALL), ver: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/candido-antonio-jose-francisco-mendes-de-almeida (acessado em 01/12/2021).

Como jurista, o pensamento do mestre Amoroso Lima tinha por base o direito natural. Em sua obra “Introdução ao Direito Moderno”, que contou com quatro edições, Alceu Amoroso Lima dedicou-se a uma ampla análise do direito como inerente a todo ser humano, inserido em sua própria natureza, e por isso mesmo transcendente à atuação legislativa do Estado.

Nesse livro, apresentado como tese para concurso de cátedra na Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), o dr. Alceu procurou alçar o direito natural à categoria de instrumento fundamental para assegurar a paz, a concórdia e a liberdade entre os seres humanos. Em seu prefácio à 2ª edição da citada obra, ele escreveu magistralmente:


“A campanha em favor da Paz só será sincera e eficiente, como querem todos os homens e povos de boa-vontade, se for acompanhada de uma campanha em favor do direito. Não de um direito abstrato e unilateral, baseado no interesse de uma nação, de uma classe, de um partido, de uma raça, de um continente, mas nas exigências substanciais e perenes da Justiça universal. Dessa justiça que impede a exploração do homem pelo homem, dos povos fracos pelos povos fortes, das classes oprimidas pelas classes dominantes, dos esquecidos pelos privilegiados, dos pobres pelos ricos, e assim por diante”. [In: Introdução ao Direito Moderno, 2ª ed. Rio de Janeiro: Liv. Agir, 1961].

 

Com igual ênfase, ainda, Amoroso Lima condenou a desumanização do direito, a sua cristalização em textos de lei estanques, frios e impessoais, aplicados mecanicamente. Denunciando que o esvaziamento do direito começava nos cursos jurídicos, ele pregou a necessidade de se restituir ao direito a sua base moral e a sua aplicação social, como único meio de impedir o que denominou de “desumanização da humanidade”.

Enfim, o grande humanismo que o professor Alceu sempre encarnou, cuja advocacia, que se pode nominar de “extrajudicial”, esteve estreitamente compromissada com a fé cristã (a que se converteu em 1928), o fez erigir o direito como uma poderosa bandeira de transformação social e efetivação do desenvolvimento com justiça social, a serviço do ser humano todo e de cada pessoa em particular. Sua admoestação ecoa atualizada pelo século XXI adentro: “Não basta a liberdade para garantir a liberdade. É preciso a prática efetiva da Justiça”. [Ver: D’ANGELIS, Wagner Rocha. O advogado e os direitos humanos em Alceu Amoroso LimaIn: Jornal do Estado, Curitiba, 08 de outubro de 1993].

Vale registrar ainda que, no pós-1964, em um tempo de excessivos e surpreendentes silêncios, emergiu de Alceu Amoroso Lima, uma primeira e inalterada manifestação pela defesa de uma sociedade democrática e do compromisso ético do cristão para erigi-la. As suas colunas semanais, em jornais do Rio e de São Paulo, para o que adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde, tornaram-se a voz da consciência nacional, de resistência ao arbítrio do Estado, de defesa da liberdade e dos direitos humanos, na luta pela anistia e redemocratização do Brasil.

5 – CONCLUSÃO

[O EXEMPLO DO DR. ALCEU PARA OS JUBILADOS] 

Falecido em 14/08/1983, na cidade de Petrópolis, o dr. Alceu deixou-nos o legado profético da alegria conquistada a partir da fé, bem assim os exemplos sobejos da esperança otimista, da perseverança no bom combate, da opção pela humildade e simplicidade, e da crença na humanidade. Razões sobejas pelas quais escolhi trazer suas lições à colação, relembrando-as nessa belíssima cerimônia de Jubilamento verificada no âmbito da OAB/Seccional do Paraná. 

O mestre Alceu, o consagrado Tristão de Athayde, continuará vivendo, nas palavras do também inesquecível e talentoso jurisconsulto Heleno Fragoso, enquanto houver na mente e no coração do defensor ou patrono – e o somos todos/as os que foram reverenciados na citada solenidade jubilatória -, “amor e compreensão pelo ser humano em desgraça e também a sua dedicação a serviço dos outros”. Ver: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Advocacia da Liberdade. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, p. 154.

E, ouso esperançosamente acrescentar à irretocável frase de Heleno, assim o será, na exata proporção em que muitos mais se somarem à construção de um novo tempo, onde haja liberdade qualitativa, igualdade de possibilidade, paz de consciência e vida digna para todos – sinônimos maiores dos direitos humanos.

 

REFERÊNCIAS

 

D’ANGELIS, Wagner Rocha. O advogado e os direitos humanos em Alceu Amoroso LimaIn: Jornal do Estado, Curitiba, 08 de outubro de 1993.

D’ANGELIS, Wagner Rocha. Heleno Cláudio Fragoso e os direitos humanos. In: Centro Heleno Fragoso pelos Direitos Humanos (opúsculo). 4ª ed. Curitiba: CHF, 1991.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Advocacia da Liberdade. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984.

 

LIMA, Alceu Amoroso. Prefácio. Introdução ao Direito Moderno, 2ª ed. Rio de Janeiro: Liv. Agir, 1961.

MENDES, Cândido et al. Dr. Alceu e o laicato hoje no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira / CAALL, 1993.

Site da OABPR. Inhttps://www.oabpr.org.br/oab-parana-realiza-solenidade-de-jubilamento-para-advogados-de-curitiba/ (matéria publicada em 02/12/2021).

 

https://www.youtube.com/ watch?v=7xT_3tOs27Q (Cerimônia de Jubilamento – Ativo Isento - 02/12/2021)

 

https://www.conjur.com.br/2021-abr-27/numero-advogadas-supera-advogados-vez-brasil (matéria de 27/04/2021)

 

http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/candido-antonio-jose-francisco-mendes-de-almeida (acessado em 01/12/2021).

 

https://www.gazetadopovo.com.br/parana/advogado-que-liderou-reacao-civica-ao-escandalo-dos-diarios-secretos-sera-homenageado/ (matéria publicada em 03/08/2021)


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(*WAGNER ROCHA D’ANGELIS - Advogado, historiador e professor universitário. Especialista em Direito Internacional (USP). Pós-graduado em Direito – USP/UFPR (Mestrado e Doutorado). Presidente da Associação de Juristas pela Integração da América Latina (AJIAL) e Presidente do Centro Heleno Fragoso pelos Direitos Humanos (CHF). Membro do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP). E-mailwagner.dangelis@yahoo.com.br.     



quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Itamaraty: Cota racial acaba sendo resolvidas na Justiça: o tribunal racial falhou?

 Após ser eliminado por fraude nas cotas raciais, candidato ganha causa e é nomeado diplomata em vaga para negros


Lucas Nogueira Siqueira foi nomeado terceiro-secretário da carreira de diplomata, do quadro permanente do Ministério das Relações Exteriores, nesta segunda-feira (23). G1 tenta contato com a defesa do aprovado.

Por Brenda Ortiz, G1 DF
25/08/2021 18h44  Atualizado há 13 horas

Após ser barrado em uma comissão, por não apresentar características físicas de um indivíduo negro, um candidato que se inscreveu no concurso para carreira diplomática, em 2015, nas vagas destinadas às cotas raciais, conseguiu ser nomeado. O nome de Lucas Nogueira Siqueira foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) desta segunda-feira (23), como terceiro-secretário da carreira de diplomata do quadro permanente do Ministério das Relações Exteriores.

Lucas Nogueira Siqueira conseguiu a aprovação na primeira fase do certame, em 2015, com 45,5 pontos. A nota de corte para os os candidatos da concorrência ampla era de 47.

Ele se autodeclarou pardo no ato da inscrição e, por isso, foi inserido na lista de vagas reservadas para negros ou pardos, e avançou para as etapas seguintes do concurso. No entanto, uma comissão de diplomatas rejeitou a auto declaração racial de Lucas, e ele foi eliminado do concurso.

A defesa do candidato conseguiu uma liminar permitindo que ele frequentasse as aulas do curso de formação do Instituto Rio Branco. A decisão, porém, não garantia sua entrada na carreira diplomática, mesmo se aprovado no curso. Nesta quarta-feira (25), o G1 não conseguiu falar com a defesa de Lucas.

Apesar de ter passado como cotista na primeira fase do concurso, na fase final, Lucas obteve pontuação para se classificar entre os não cotistas – e foi aprovado nesse grupo. A concorrência entre cotistas era de 111,8 por vaga, e, entre os não cotistas, 239,6 por vaga.

Fraudes nas cotas raciais
No concurso de 2015 para o Itamaraty, também houve registro de outros candidatos suspeitos de terem fraudado a auto declaração racial, o que fez o Ministério Público Federal (MPF) apresentar uma ação civil pública contra esses concorrentes.

Por meio de fotografias, obtidas diretamente de bancos de dados oficiais, e também por meio das redes sociais, o MPF identificou os candidatos. Os procuradores concluíram que eles não tinham a aparência física de pessoas negras.

Em um processo que correu na 5ª Vara Federal do Distrito Federal, desde 2016, a defesa de Lucas Nogueira apresentou laudos de sete dermatologistas identificando o candidato como pardo. Os laudos foram baseados na escala de Fitzpatrick, que estabelece seis categorias de pele em razão de sua resposta à radiação ultravioleta. O jovem foi classificado no nível 4, equivalente a pele morena moderada, segundo os dermatologistas.

Por conta de uma recomendação do MPF, o Itamaraty estabeleceu, em dezembro de 2015, que os cotistas aprovados deveriam ser avaliados "perante sete diplomatas integrantes do Comitê Gestor de Gênero e Raça (CGGR)" do ministério, para "esclarecer eventuais dúvidas" sobre sua "condição de preto ou pardo".

A defesa de Lucas contestou a convocação dessa etapa, não prevista no edital de abertura do concurso. A comissão formada por diplomatas rejeitou a auto declaração dele e de mais três candidatos.

Uma liminar, expedida em julho de 2016, permitiu que Lucas Nogueira frequentasse as aulas.

https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/08/25/apos-ser-eliminado-por-fraude-nas-cotas-raciais-candidato-branco-ganha-causa-e-e-nomeado-diplomata-em-vaga-para-negros.ghtml

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Além da CPI: Kátia Abreu cobra R$ 100 mil de Ernesto Araújo na Justiça por danos morais - Nelson Lima Neto (O Globo)

 Além da CPI: Kátia Abreu cobra R$ 100 mil de Ernesto Araújo na Justiça por danos morais

Por Nelson Lima Neto

O Globo, 20/05/2021 • 06:00

Na terça, como se sabe, a senadora Kátia Abreu e o ex-chanceler Ernesto Araújo trocaram acusações durante a CPI da Covid-19. De um lado, Kátia chamou o diplomata de incompetente e mentiroso, enquanto Araújo voltou a afirmar que a parlamentar fez lobby favorável a China no leilão do 5G.

Pois o embate entre os dois também está na Justiça - e justamente por conta da opinião de Araújo sobre um suposto interesse da senadora no leilão do 5G. O caso está na 9ª Vara Cível de Brasília.

Kátia cobra, veja só, R$ 100 mil de Araújo por danos morais por uma postagem feita no Twitter em março.

"Em 4/3 recebi a Senadora Kátia Abreu para almoçar no MRE. Conversa cortês. Pouco ou nada falou de vacinas. No final, à mesa, disse: “Ministro, se o senhor fizer um gesto em relação ao 5G, será o rei do Senado", disse o ex-ministro.

Na petição assinada pelos advogados do Senado, consta que Araújo "imputou falsamente à autora fato ofensivo à sua reputação, como a prática de chantagem; também imputou falsamente conduta definida como crime, advocacia administrativa (art. 321 do CP) por parte da Senadora junto ao então Ministro de Estado, sugerido que ela possuísse interesse no leilão para definir a exploração da tecnologia 5G no Brasil".

https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/alem-da-cpi-katia-abreu-cobra-r-100-mil-de-ernesto-araujo-na-justica-por-danos-morais.html


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Um candidato INACEITÁVEL para a CD, sob todos os pontos de vista - Editorial do Estadão

 O candidato do governo, ou melhor, do presidente JB (pois governo não existe) tem sérios problemas com a Justiça. Parece incrível que, mesmo assim, dirigentes e parlamentares façam de conta de que se trate de um candidato aceitável...

Uma candidatura constrangedora
Editorial de O Estado de S. Paulo (6/1/2021)

É um acinte que a Câmara, cuja atual legislatura foi eleita sob o anseio de novo patamar de moralidade na vida pública, tenha sua presidência disputada pelo deputado Arthur Lira
É embaraçosa a normalidade com que tem sido aceita a candidatura do deputado Arthur Lira (Progressistas-AL) para a presidência da Câmara. Com o histórico do parlamentar, já é um tanto estranho que ele continue sendo líder do partido na Câmara. No entanto, nesses estranhos tempos, nada parece ser capaz de ruborizar seus apoiadores. Como se sabe, o seu mais ilustre apoiador é o presidente Jair Bolsonaro.
A proximidade do deputado Arthur Lira com questões penais vem de longa data. Em 2012, seu assessor parlamentar Jaymerson José Gomes foi detido pela Polícia Federal no Aeroporto de Congonhas, depois de passar pelo aparelho de raio X, com dinheiro escondido embaixo da roupa. Em relação a tais fatos, a Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou o deputado em 2018 por lavagem de dinheiro e corrupção.
Noutro caso, Arthur Lira foi acusado pelo Ministério Público Federal de chefiar na Assembleia Legislativa de Alagoas um esquema milionário de “rachadinha”, em que parte do salário dos funcionários do gabinete era destinada ao parlamentar. Segundo revelou o Estado, documentos indicam desvios da ordem de R$ 254 milhões, entre 2001 e 2007.
A Arthur Lira, a “rachadinha” teria gerado um rendimento mensal de R$ 500 mil. Recentemente se revelou que a Receita Federal, já em 2009, havia cobrado R$ 1,9 milhão do deputado relativo a impostos não pagos sobre recursos de origem desconhecida, precisamente no período em que o Ministério Público o acusa de operar o esquema de “rachadinha” em Alagoas.
Arthur Lira recorreu da multa do Fisco ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), mas seu recurso foi negado por unanimidade. Em 2017, o deputado aderiu ao Programa Especial de Regularização Tributária (Pert), reconhecendo o imposto cobrado. Atualmente, faz o pagamento parcelado.
A denúncia do Ministério Público Federal também relata a utilização de empresas para simular negócios com a Assembleia Legislativa de Alagoas. Segundo os procuradores, trata-se de manobra para “lavar” dinheiro desviado.
Além disso, Arthur Lira foi condenado em segunda instância na esfera cível por improbidade administrativa. Apesar da Lei da Ficha Limpa, conseguiu tomar posse em 2018 como deputado federal graças a uma liminar do Tribunal de Justiça de Alagoas.
Diante desse histórico, não cabe ao Palácio do Planalto dizer que apoia a candidatura de Arthur Lira para que as reformas sejam aprovadas ou para que sejam ampliados os excludentes de ilicitude para condutas ilegais de policiais. Seja qual for a agenda legislativa que o presidente da República queira promover nos próximos dois anos, é impossível que não haja, entre as mais de cinco centenas de deputados federais, outro parlamentar com uma ficha menos complicada do que a de Arthur Lira.
Mais do que favorecer determinada pauta no Legislativo, o presidente Jair Bolsonaro parece pretender, com o apoio à candidatura do líder do Progressistas, diminuir deliberadamente o patamar moral do Congresso. Caso consiga colocar na presidência da Casa um deputado que sabidamente praticou a “rachadinha” – Arthur Lira pagou até imposto em virtude dos valores recebidos por meio da prática ilegal –, talvez Jair Bolsonaro consiga que haja menos escândalo em torno das acusações contra seu primogênito, Flávio.
Mesmo com todas suas limitações e eventuais erros, a Operação Lava Jato teve um mérito inegável, reconhecido até por seus mais ferozes críticos. Ela instaurou uma nova sensibilidade em relação ao cumprimento da lei. O que antes era aceitável deixou de sê-lo. De alguma forma, com essa candidatura à presidência da Câmara, Arthur Lira e Jair Bolsonaro fazem movimento oposto ao da Lava Jato, transmitindo a mensagem de que, na política, tudo deveria ser tolerado, não importando a lei ou a decência.
É um acinte que a Câmara, cuja atual legislatura foi eleita com recorde histórico de renovação e sob o anseio de um novo e mais alto patamar de moralidade na vida pública, tenha sua presidência disputada pelo deputado Arthur Lira. O eleitor merece um mínimo de respeito.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Mandonismo e patrimonialismo: origens antigas no Brasil - livro de Adelto Goncalves

A coisa vem de longe: nossos mandarins sempre tiveram privilégios nesta terra onde quem é amigo do rei, ou tem um cargo estratégico, nunca fica órfão. A lei só vale para os pobres e desprovidos de influência.
Paulo Roberto de Almeida

Privilégios ancestrais

Livro sobre a Justiça em São Paulo na época colonial descreve as raízes dos desmandos públicos no Brasil



Pesquisa Fapesp, n. 234 | AGOSTO 2015

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© ACERVO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL
Charge de Manuel  de Araújo Porto-Alegre satirizava, no século XIX, as relações corruptas na Colônia
Charge de Manuel de Araújo Porto-Alegre satirizava, no século XIX, as relações corruptas na Colônia
Reconstituir o funcionamento da Justiça no Brasil colonial é, ao mesmo tempo, mapear as estruturas de poder do período, reconhecer arraigados maus costumes e observar a formação de uma elite que se manteria dominante até as primeiras décadas do século XX. Esse recorte define o livro Direito e justiça em terras d’el rei na São Paulo colonial 1709-1822, de Adelto Gonçalves, lançado em julho pela Imprensa Oficial do Governo do Estado de São Paulo. Verificar e descrever as atribuições dos membros de uma rede de poder que ocupava cargos de ouvidores, juízes de fora, provedores, corregedores, juízes ordinários e vereadores foi um dos objetivos primordiais de Gonçalves, que procurou seguir uma tendência recente na historiografia brasileira, “que procura privilegiar as pesquisas sobre as formas de governar”.
O autor, no entanto, não é da área de história e adquiriu familiaridade com o período que estudou pela porta da literatura. Jornalista aposentado, Gonçalves é doutor em Letras – Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e até 2014 lecionou língua portuguesa no curso de direito da Universidade Paulista (Unip), em Santos, que financiou sua pesquisa sobre a Justiça colonial em São Paulo. Seu interesse pelo assunto foi despertado por suas pesquisas de doutorado sobre o poeta e inconfidente Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e pós-doutorado sobre o poeta português Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), esta realizada com apoio da FAPESP. Gonzaga foi ouvidor em Vila Rica e o pai de Bocage fez carreira no Judiciário em Portugal até ser acusado de desvios e cair em desgraça política. As suas pesquisas no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa – complementadas no acervo do Arquivo do Estado de São Paulo –, permitiram estabelecer as atribuições dos altos funcionários do estado, começando pela relação completa dos governadores e capitães-generais (cargos concomitantes) no período estudado, corrigindo erros de listas anteriores.
“Fui levantando a nobreza da terra, as pessoas que mandavam e recorriam à Justiça para conseguir privilégios, como cargos e títulos”, diz o pesquisador. Eram os chamados “homens bons”, “que usufruíam tanto quanto podiam de suas relações com os representantes do poder”. Dessa casta saíam os camaristas ou vereadores – membros das câmaras municipais –, que, até fins do século XVII, acumulavam funções administrativas com o exercício da Justiça ordinária. Em geral, as vilas, tanto de Portugal quanto das colônias, mantinham apenas um juiz ordinário e um juiz de órfãos. No Brasil os casos criminais ficavam a cargo dos primeiros, que se baseavam, para julgá-los, apenas nos usos e costumes. Muitas vezes as câmaras nem sequer tinham sede apropriada. “Os julgamentos eram feitos embaixo de árvores por autoridades que não tinham formação em direito nem a quem recorrer, porque raramente havia nas colônias alguém formado em leis”, diz Gonçalves. Essas autoridades eram chamadas de “juízes pedâneos” porque julgavam de pé.
Já havia nessa época a figura do ouvidor-geral, criada por um regimento de 1628 que revogava a atribuição concedida aos titulares das capitanias hereditárias (capitães donatários) a fazer justiça nas terras de seu domínio. O envio regular de ouvidores e juízes de fora por Portugal, no entanto, só se deu no século XVIII. “Eram, pela primeira vez, especialistas em direito vindos da Universidade de Coimbra e tinham a missão de disciplinar e uniformizar a execução da Justiça”, diz Gonçalves. Como medida moralizante, os ouvidores não podiam se casar com mulheres residentes no Brasil sem autorização da Coroa, para não se envolver com as famílias poderosas e seus interesses econômicos. “Mas acabavam se envolvendo mesmo assim”, diz o pesquisador. “E, com o tempo, as famílias abastadas começaram a mandar seus filhos estudar em Coimbra e voltar aptos a ocuparem o cargo de juiz de fora.”
Na prática, apenas os pobres eram condenados pela Justiça colonial. Segundo um regimento de 1669, o ouvidor tinha autoridade para executar a pena de morte, sem apelação, para os crimes cometidos por escravos e índios. Mas, se um juiz ou ouvidor pretendesse punir um grande proprietário de terra, estava correndo risco. “Os que tinham prestígio ou haviam prestado favores à Coroa eram intocáveis.”
O ouvidor não podia ser preso ou suspenso por nenhuma autoridade local, nem mesmo o capitão-general. Suas decisões não se baseavam propriamente em leis formalizadas. Somente com o Regimento dos ouvidores-gerais do Rio de Janeiro, de 1669, e o Regimento dos ouvidores de São Paulo, de 1770, surgiram referências explícitas para aplicação geral de princípios. Foi também com esses decretos que o ouvidor-geral passou a ter o cargo civil mais alto das possessões portuguesas de ultramar. As apelações tinham duas instâncias, o Tribunal de Relação da Bahia e a Casa da Suplicação, em Lisboa, mas raramente os processos passavam da instância primária.
Os ouvidores tinham enorme poder econômico em mãos, uma vez que cabia a eles a fiscalização do recolhimento de tributos e outras fontes de receita. Desde o século anterior, a maior parte dos ingressos financeiros de Portugal vinha das colônias ou das alfândegas. Também cabia ao ouvidor fiscalizar os gastos e a atuação de vereadores e juízes ordinários – embora não pudesse se imiscuir nas funções da Câmara, que, a essa altura, tinha suas atribuições autônomas reduzidas à execução de pequenas obras. O poder das Câmaras, ocupado por filhos e netos das primeiras elites, manteve-se de modo mais ou menos simbólico. “Eram ocupados por aqueles potentados que viriam décadas depois a ser chamados de ‘coronéis’”, diz Gonçalves.
O poder nas mãos dos prepostos da Coroa era tal que, para obter e manter privilégios e recursos indevidos, jogavam com a possibilidade de estimular a secessão da Colônia. “Portugal era, a rigor, um país pobre nessa época”, diz Gonçalves. “Não tinha Exército ou outros meios para reprimir rebeliões pela força.” Foi assim que proliferaram as figuras dos “grossos devedores”, autoridades locais que desviavam tributos até que a Coroa, para recuperar essa “dívida”, entrava em acordo com vistas a um ressarcimento parcial. Segundo Gonçalves, “a questão fundamental residia na própria fragilidade do reino, que, para sobreviver, sempre permitia brechas para ações praticadas sob a proteção do próprio Estado”.
A própria narrativa histórica dominante até há poucas décadas traz sinais desse modelo – enquanto os posseiros ricos e, até certo ponto, aliados da Coroa foram identificados como desbravadores, os lavradores que ocupassem terras eram “invasores” ou “intrusos”. “Como mostram os documentos, os juízes quase sempre usaram o direito para interpretar cartas de doação, revogação de sesmarias, sucessões e desmembramentos de terras de acordo com os interesses dos poderosos locais”, diz o pesquisador.
© REPRODUÇÃO
Reprodução de documento relativo a processos de feitiçaria que estão sendo transcritos e estudados na USP
Reprodução de documento relativo a processos de feitiçaria que estão sendo transcritos e estudados na USP
Justiça Eclesiástica
Outro aspecto da Justiça em São Paulo no mesmo período histórico é tema de um projeto de pesquisa em andamento no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Um grupo de pesquisadores coordenado pelo professor Marcelo Módolo está às voltas com documentos que registram processos relativos à suposta prática de feitiçaria. A pesquisa intitulada Bruxas paulistas: edição filológica de documentação sobre feitiçaria consiste no estudo e na transcrição dos 12 processos desse tipo abertos entre 1739 e 1771 pela Justiça eclesiástica, braço do Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) no Brasil, depositados no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.
A Justiça eclesiástica corria paralelamente à Justiça comum, que, no entanto, acatava as decisões da primeira, uma vez que o Estado assumia para si a fé católica. Promotores e juízes eclesiásticos eram membros da Igreja que avaliavam denúncias, procediam às investigações e proferiam a sentença. A execução cabia à Justiça comum. “Eram procedimentos parecidos com o atual inquérito policial”,  explica a doutoranda em Letras Nathalia Reis Fernandes, graduada em Letras e Direito, integrante do grupo de pesquisa. Entre as penas possíveis estavam a morte e a perda de bens – nesses casos, o processo era enviado para a sede do Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Foi o que aconteceu com dois dos casos estudados, mas não é possível, pela documentação acessível no Brasil, saber se eles resultaram em execuções.
Os réus eram quase sempre negros e muitas das acusações estavam ligadas a práticas das religiões de origem africana. Há desde processos supostamente relacionados a mortes, como a da escrava Páscoa, acusada de “uso de magia” para causar pelo menos quatro mortes numa mesma família, até casos banais, como o do escravo Pascoal José de Moura (um dos poucos réus identificados por nome e sobrenome nos documentos), processado por confeccionar patuás. “Há também o caso de um grupo de homens negros que foram presos por participar de um batuque em que havia uma cabra e um casco de cágado”, conta Módolo.
O estudo coordenado por Módolo está na fase do estudo filológico e linguístico, começando pela transcrição “semidiplomática” dos documentos – aquela que procura manter a ortografia e a sintaxe originais. O trabalho é dificultado por lacunas causadas pela deterioração do material, caligrafia particularmente complicada e ortografia desafiadora numa época em que as pessoas letradas eram minoria e não havia padronização rígida da língua escrita. Uma segunda fase deverá se debruçar sobre os reflexos historiográficos dos processos relatados nos documentos. n
LivroGONÇALVES, Adelto. Direito e Justiça em terras d’El Rei na São Paulo colonial 1709-1822. Imprensa Oficial. São Paulo, 2015

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

A justica, no Brasil colonial, era uma bagunca (depois piorou) - livro de Adelto Goncalves

Parece que antes era improvisado. Os juizes atuais deram um passo adiante na improvisação...
Paulo Roberto de Almeida

Privilégios ancestrais

Livro sobre a Justiça em São Paulo na época colonial descreve as raízes dos desmandos públicos no Brasil
MÁRCIO FERRARI | ED. 234 | AGOSTO 2015
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© ACERVO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL
Charge de Manuel  de Araújo Porto-Alegre satirizava, no século XIX, as relações corruptas na Colônia
Charge de Manuel de Araújo Porto-Alegre satirizava, no século XIX, as relações corruptas na Colônia
Pesquisa, revista da Fapesp, 13/08/2015

Reconstituir o funcionamento da Justiça no Brasil colonial é, ao mesmo tempo, mapear as estruturas de poder do período, reconhecer arraigados maus costumes e observar a formação de uma elite que se manteria dominante até as primeiras décadas do século XX. Esse recorte define o livro Direito e justiça em terras d’el rei na São Paulo colonial 1709-1822, de Adelto Gonçalves, lançado em julho pela Imprensa Oficial do Governo do Estado de São Paulo. Verificar e descrever as atribuições dos membros de uma rede de poder que ocupava cargos de ouvidores, juízes de fora, provedores, corregedores, juízes ordinários e vereadores foi um dos objetivos primordiais de Gonçalves, que procurou seguir uma tendência recente na historiografia brasileira, “que procura privilegiar as pesquisas sobre as formas de governar”.
O autor, no entanto, não é da área de história e adquiriu familiaridade com o período que estudou pela porta da literatura. Jornalista aposentado, Gonçalves é doutor em Letras – Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e até 2014 lecionou língua portuguesa no curso de direito da Universidade Paulista (Unip), em Santos, que financiou sua pesquisa sobre a Justiça colonial em São Paulo. Seu interesse pelo assunto foi despertado por suas pesquisas de doutorado sobre o poeta e inconfidente Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810) e pós-doutorado sobre o poeta português Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805), esta realizada com apoio da FAPESP. Gonzaga foi ouvidor em Vila Rica e o pai de Bocage fez carreira no Judiciário em Portugal até ser acusado de desvios e cair em desgraça política. As suas pesquisas no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa – complementadas no acervo do Arquivo do Estado de São Paulo –, permitiram estabelecer as atribuições dos altos funcionários do estado, começando pela relação completa dos governadores e capitães-generais (cargos concomitantes) no período estudado, corrigindo erros de listas anteriores.
“Fui levantando a nobreza da terra, as pessoas que mandavam e recorriam à Justiça para conseguir privilégios, como cargos e títulos”, diz o pesquisador. Eram os chamados “homens bons”, “que usufruíam tanto quanto podiam de suas relações com os representantes do poder”. Dessa casta saíam os camaristas ou vereadores – membros das câmaras municipais –, que, até fins do século XVII, acumulavam funções administrativas com o exercício da Justiça ordinária. Em geral, as vilas, tanto de Portugal quanto das colônias, mantinham apenas um juiz ordinário e um juiz de órfãos. No Brasil os casos criminais ficavam a cargo dos primeiros, que se baseavam, para julgá-los, apenas nos usos e costumes. Muitas vezes as câmaras nem sequer tinham sede apropriada. “Os julgamentos eram feitos embaixo de árvores por autoridades que não tinham formação em direito nem a quem recorrer, porque raramente havia nas colônias alguém formado em leis”, diz Gonçalves. Essas autoridades eram chamadas de “juízes pedâneos” porque julgavam de pé.
Já havia nessa época a figura do ouvidor-geral, criada por um regimento de 1628 que revogava a atribuição concedida aos titulares das capitanias hereditárias (capitães donatários) a fazer justiça nas terras de seu domínio. O envio regular de ouvidores e juízes de fora por Portugal, no entanto, só se deu no século XVIII. “Eram, pela primeira vez, especialistas em direito vindos da Universidade de Coimbra e tinham a missão de disciplinar e uniformizar a execução da Justiça”, diz Gonçalves. Como medida moralizante, os ouvidores não podiam se casar com mulheres residentes no Brasil sem autorização da Coroa, para não se envolver com as famílias poderosas e seus interesses econômicos. “Mas acabavam se envolvendo mesmo assim”, diz o pesquisador. “E, com o tempo, as famílias abastadas começaram a mandar seus filhos estudar em Coimbra e voltar aptos a ocuparem o cargo de juiz de fora.”
Na prática, apenas os pobres eram condenados pela Justiça colonial. Segundo um regimento de 1669, o ouvidor tinha autoridade para executar a pena de morte, sem apelação, para os crimes cometidos por escravos e índios. Mas, se um juiz ou ouvidor pretendesse punir um grande proprietário de terra, estava correndo risco. “Os que tinham prestígio ou haviam prestado favores à Coroa eram intocáveis.”
O ouvidor não podia ser preso ou suspenso por nenhuma autoridade local, nem mesmo o capitão-general. Suas decisões não se baseavam propriamente em leis formalizadas. Somente com o Regimento dos ouvidores-gerais do Rio de Janeiro, de 1669, e o Regimento dos ouvidores de São Paulo, de 1770, surgiram referências explícitas para aplicação geral de princípios. Foi também com esses decretos que o ouvidor-geral passou a ter o cargo civil mais alto das possessões portuguesas de ultramar. As apelações tinham duas instâncias, o Tribunal de Relação da Bahia e a Casa da Suplicação, em Lisboa, mas raramente os processos passavam da instância primária.
Os ouvidores tinham enorme poder econômico em mãos, uma vez que cabia a eles a fiscalização do recolhimento de tributos e outras fontes de receita. Desde o século anterior, a maior parte dos ingressos financeiros de Portugal vinha das colônias ou das alfândegas. Também cabia ao ouvidor fiscalizar os gastos e a atuação de vereadores e juízes ordinários – embora não pudesse se imiscuir nas funções da Câmara, que, a essa altura, tinha suas atribuições autônomas reduzidas à execução de pequenas obras. O poder das Câmaras, ocupado por filhos e netos das primeiras elites, manteve-se de modo mais ou menos simbólico. “Eram ocupados por aqueles potentados que viriam décadas depois a ser chamados de ‘coronéis’”, diz Gonçalves.
O poder nas mãos dos prepostos da Coroa era tal que, para obter e manter privilégios e recursos indevidos, jogavam com a possibilidade de estimular a secessão da Colônia. “Portugal era, a rigor, um país pobre nessa época”, diz Gonçalves. “Não tinha Exército ou outros meios para reprimir rebeliões pela força.” Foi assim que proliferaram as figuras dos “grossos devedores”, autoridades locais que desviavam tributos até que a Coroa, para recuperar essa “dívida”, entrava em acordo com vistas a um ressarcimento parcial. Segundo Gonçalves, “a questão fundamental residia na própria fragilidade do reino, que, para sobreviver, sempre permitia brechas para ações praticadas sob a proteção do próprio Estado”.
A própria narrativa histórica dominante até há poucas décadas traz sinais desse modelo – enquanto os posseiros ricos e, até certo ponto, aliados da Coroa foram identificados como desbravadores, os lavradores que ocupassem terras eram “invasores” ou “intrusos”. “Como mostram os documentos, os juízes quase sempre usaram o direito para interpretar cartas de doação, revogação de sesmarias, sucessões e desmembramentos de terras de acordo com os interesses dos poderosos locais”, diz o pesquisador.
© REPRODUÇÃO
Reprodução de documento relativo a processos de feitiçaria que estão sendo transcritos e estudados na USP
Reprodução de documento relativo a processos de feitiçaria que estão sendo transcritos e estudados na USP
Justiça Eclesiástica
Outro aspecto da Justiça em São Paulo no mesmo período histórico é tema de um projeto de pesquisa em andamento no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Um grupo de pesquisadores coordenado pelo professor Marcelo Módolo está às voltas com documentos que registram processos relativos à suposta prática de feitiçaria. A pesquisa intitulada Bruxas paulistas: edição filológica de documentação sobre feitiçaria consiste no estudo e na transcrição dos 12 processos desse tipo abertos entre 1739 e 1771 pela Justiça eclesiástica, braço do Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) no Brasil, depositados no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.
A Justiça eclesiástica corria paralelamente à Justiça comum, que, no entanto, acatava as decisões da primeira, uma vez que o Estado assumia para si a fé católica. Promotores e juízes eclesiásticos eram membros da Igreja que avaliavam denúncias, procediam às investigações e proferiam a sentença. A execução cabia à Justiça comum. “Eram procedimentos parecidos com o atual inquérito policial”,  explica a doutoranda em Letras Nathalia Reis Fernandes, graduada em Letras e Direito, integrante do grupo de pesquisa. Entre as penas possíveis estavam a morte e a perda de bens – nesses casos, o processo era enviado para a sede do Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Foi o que aconteceu com dois dos casos estudados, mas não é possível, pela documentação acessível no Brasil, saber se eles resultaram em execuções.
Os réus eram quase sempre negros e muitas das acusações estavam ligadas a práticas das religiões de origem africana. Há desde processos supostamente relacionados a mortes, como a da escrava Páscoa, acusada de “uso de magia” para causar pelo menos quatro mortes numa mesma família, até casos banais, como o do escravo Pascoal José de Moura (um dos poucos réus identificados por nome e sobrenome nos documentos), processado por confeccionar patuás. “Há também o caso de um grupo de homens negros que foram presos por participar de um batuque em que havia uma cabra e um casco de cágado”, conta Módolo.
O estudo coordenado por Módolo está na fase do estudo filológico e linguístico, começando pela transcrição “semidiplomática” dos documentos – aquela que procura manter a ortografia e a sintaxe originais. O trabalho é dificultado por lacunas causadas pela deterioração do material, caligrafia particularmente complicada e ortografia desafiadora numa época em que as pessoas letradas eram minoria e não havia padronização rígida da língua escrita. Uma segunda fase deverá se debruçar sobre os reflexos historiográficos dos processos relatados nos documentos.

Leia resenha “Ações do Santo Ofício no Brasil”.
Livro
GONÇALVES, Adelto. Direito e Justiça em terras d’El Rei na São Paulo colonial 1709-1822. Imprensa Oficial. São Paulo, 2015