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sexta-feira, 5 de maio de 2023

Questão da Ucrânia — A importância da Comunidade de Estados Independentes e de Minsk para a solução do conflito- Paulo Antônio Pereira Pinto (Mundorama)

 

Questão da Ucrânia — A importância da Comunidade de Estados Independentes e de Minsk para a solução do conflito

Paulo Antônio Pereira Pinto

Photo by Christian Lue on Unsplash

Rio de Janeiro, 2 de maio de 2023

“Nesse caso, a Rússia também não seria reconhecida como país independente”, comentou leitor da Folha de São Paulo, após notícia de que o Embaixador chinês em Paris, S.r. Shaye, ter afirmado que “a Ucrânia e os demais países que pertenceram à União Soviética não têm status efetivo sob o direito internacional, porque não há um acordo internacional que confirme seus status como nações soberanas”.

Não seria esta, obviamente, a premissa para a resolução do conflito em curso entre a Rússia e a Ucrânia: o não reconhecimento de ambas como países independentes.

Nem seria realista a expectativa de que guerras na Europa sejam resolvidas, atualmente, sempre, pelo “quarteto” EUA, Reino Unido, Alemanha e França. No caso da invasão russa a solução contemplada por tais atores habituais implicaria apenas a busca da vitória ucraniana. Tal solução, resta pouca dúvida, não levaria a paz duradoura.

Na perspectiva de que Rússia e Ucrânia existem como nações soberanas e que há que se buscar o diálogo para solução pacífica do conflito, este exercício de reflexão pretende sugerir que a questão ucraniana poderia ser considerada, em “arcabouço” de geometria mais ampla — deixada, a propósito, pela antiga União Soviética.

Penso na moldura da “Comunidade de Estados Independentes” — herdeira de países que formaram a URSS — estabelecida, em Minsk, capital da Belarus, em 8 de dezembro de 1991.

A partir do início daquele ano, a dissolução da União Soviética parecia algo inevitável e, na data citada no parágrafo anterior, líderes da Rússia, Belarus e Ucrânia se reuniram na reserva natural de Belovezhskaya Pushcha, 50 km ao norte da cidade de Brest, Belarus. Assim nasceu a ideia da Comunidade dos Estados Independentes, ao mesmo tempo em que foi anunciado que a nova confederação estaria “aberta a todas as repúblicas da União Soviética”.

O então Presidente da URSS, Michail Gorbachev, descreveu a reunião como algo “ilegal e perigoso” e “um golpe constitucional”. Mas prontamente ficou claro que pouco ou nada havia por fazer. Em 21 de dezembro, os líderes de onze das quinze ex-repúblicas soviéticas se reuniram em Almaty, Cazaquistão, e assinaram o tratado. Desta maneira, a CEI foi ratificada e a União Soviética oficialmente extinta.Em 25 de dezembro, Gorbachev renunciou como presidente de um país que já não existia “de facto”.

Os três estados bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia) não assinaram o tratado, assim como a Geórgia — os quatro argumentaram que haviam sido incorporados à União Soviética à força. Os 11 participantes iniciais foram Armênia, Azerbaijão, Belarus, Cazaquistão, Quirguistão, Moldovia, Federação Russa,Tajiquistão, Turcomenistão, Uzbequistão e Ucrânia. Em dezembro de 1993, a Geórgia finalmente aderiu à CEI e em agosto de 2008 se retirou após a invasão russa de seu território.

Mesmo independentes, os 11 antigos membros da URSS decidiram manter vínculo entre si, com o objetivo de estabelecer sistema econômico e de defesa entre antigas repúblicas da União Soviética.

Apesar da forte influência da Federação Russa, os demais países que compõem a CEI mantêm formalmente uma autonomia, garantida pela descentralização política conseguida com a independência em relação à estrutura administrativa da antiga União Soviética.

Tendo como capital a cidade de Minsk, a CEI é estruturada administrativamente por dois conselhos, sendo um composto por chefes de governo e outro, por chefes de Estado.

Apesar da estrutura de seu funcionamento formal, entre seus membros existem inúmeras disputas entre os países da comunidade, além do não cumprimento de acordos firmados. Vale destacar as constantes tensões e conflitos entre membros da CEI ou mesmo no interior dos países, em decorrência de diferenças étnicas e regionais.

Tive oportunidade de visitar a sede da CEI, em Minsk, a título de cortesia, enquanto fui Embaixador na Belarus, entre 2015 e 2019, e verifiquei que se trata de organização “simbólica”, que funcionaria como uma espécie de “banco de reservas”, onde permanecem disponíveis acordos, mecanismos de negociação e projetos da antiga URSS, que poderiam ser “colocados em campo”, caso alguma proposta de integração ou de resolução de conflito fosse realmente almejada.

Embaixadores dos países membros da referida comunidade, acreditados em Minsk, apresentam credenciais também ao Diretor da CEI. A lista de participantes tem variado, com inclusão e separação de antigos membros da URSS, de acordo com dinâmica regional de aproximação ou distanciamento da Rússia.

De qualquer forma, existem adormecidos na CEI mecanismos de articulação que “eventualmente” poderiam ser acionados no que diz respeito à Questão da Ucrânia. Minsk, nesse contexto, tem sido escolhida, em consenso com países ocidentais, como local para acordos destinados a negociar disputas entre países membros da antiga União Soviética.

Em certa medida, sugestão de esforço no sentido de valorizar tal “organização semiadormecida” poderia servir de aceno ao Presidente Putin, em seus devaneios de ressuscitar um “projeto Eurasiano”, sob influência de Moscou, conforme será lembrado a seguir.

Ademais, cabe registrar que “acordos de Minsk” têm sido a norma para tentar resolver conflitos envolvendo antigos membros da União Soviética, entre estes a Rússia.

Há, no momento, dois “Minsk Groups”, associados a conflitos ocorridos depois da dissolução da União Soviética: o que foi dedicado ao conflito em Nagorno-Karabakh (NK), entre o Azerbaijão e a Armênia; e o facilitador do diálogo na questão da Ucrânia.

Em ambos, o nome desta capital consta como o local onde os encontros são ou deixam de ser realizados. Não há protagonismo bielorrusso na busca de solução dos problemas. O papel de facilitador nas negociações, no entanto, eleva o perfil diplomático da Belarus no cenário mundial. Este país, sabe-se, é objeto de sanções internacionais por seu sistema de governo autoritário, que o leva a ser conhecido como “A Última Ditadura da Europa”.

O primeiro Grupo de Minsk foi criado, em 1992, com vistas à conferência para negociação entre Baku, Azerbaijão, e Yerevan, Armênia. É presidido por representantes dos Estados Unidos, França e Federação Russa. Seus membros permanentes são: Belarus, Alemanha, Itália, Suécia, Finlândia e Turquia.

Na prática, seus “co-chairs” reúnem-se, periodicamente, em Viena, sede da Organização de Segurança e Cooperação da Europa, e visitam as capitais dos países que disputam o território de Nagorno-Karabakh.

Entre os empecilhos para a solução do conflito, por um lado, a Armênia não aceita a aplicação de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que determinam sua retirada do território azeri. Por outro, Baku não permitiria o contato direto entre as partes em combate naquela área, pois — de acordo com seu entendimento — tal comunicação significaria o “reconhecimento de alguma legitimidade ao inimigo invasor”.

O cenário de congelamento permanente deste conflito muito prejudica projetos de integração da área antes ocupada pela URSS, nos moldes da União Econômica Euroasiática, ambicionada por Putin.

Desnecessário lembrar que a questão da Ucrânia é disputa mais próxima de Minsk, envolvendo populações etnicamente “russas”. Convencionou-se, também, atribuir o nome desta capital ao grupo que lhe busca solução.

A propósito, o que acontece no Cáucaso diz respeito a pessoas que, segundo visão “imperial” de Moscou, seriam bárbaros, a serem mantidos na esfera de influência da Federação Russa, como obstáculo de contenção de impérios vizinhos — como o fazia Roma antiga.

A nova visibilidade de Minsk

Quando cheguei a Minsk, em março de 2015, a Belarus ficara mais nítida no mapa da Europa Central, em virtude da crise ucraniana, iniciada um ano antes.

Sua posição estratégica crescera em importância, em área de turbulência política, enquanto permanecia o interesse pela adesão bielorrussa ao projeto “eurasiano”, ambicionado pelo Presidente Putin.

Em síntese, cabe lembrar que, enquanto “Bela” significa “Branco”, o nome do país não pode ser traduzido por “Rússia Branca”. O “Rus” não se refere à Rússia, mas descreve área da Europa Central, coberta por neve e povoada por eslavos, em oposição à Rustênia Negra, controlada por povos lituanos.

Outra possível origem do nome seria o fato de que aquele território não ter sido invadido pelos mongóis que, no século XIII, conquistaram grande parte da Europa. A área em questão, portanto, era considerada parte do “Rus Branco”. “Bel” ou “Biel” também significaria “livre”, num período em que a maior parte da Rússia se encontrava sob o jugo dos tártaros.

Cabe, portanto, notar que a Belarus é um país cujo nome sugere o passado de um povo que habitou “uma região europeia livre”.

Verifica-se, contudo, que, desde sua independência da extinta União Soviética, tem sido chamada de a “última ditadura na Europa”, em virtude de manter sistema de governo com fortes traços do antigo regime soviético.

O nome “Belarus” referia-se, então, a uma região específica do centro da Europa e, não, a uma nação, até o final do século XIX. A estruturação do território bielorrusso, nos moldes de um Estado moderno, ocorreu a partir de 1920, com sua inclusão na União Soviética.

Durante o período da República Socialista Soviética Bielorrussa, o país adquiriu estrutura de estado nacional. Suas instituições nacionais eram e continuam a ser fortemente moldadas pelas criadas na Rússia Soviética.

Daí, não causar surpresa que a moldura institucional hoje existente em Minsk sirva para manter a Belarus em área de influência russa.

Isto é, a forma de governança, com fortes traços autoritários herdados do período soviético, serve à formulação de políticas nacionais que, ainda hoje, com grande facilidade, se alinham com orientações ditadas por Moscou.

O projeto eurasiano de Putin

Verifica-se, a propósito, que, por trás da ofensiva da Rússia sobre a Ucrânia, há mais do que interesses geopolíticos e econômicos. O Presidente Vladimir Putin estaria defendendo, também, projeto de “neo euro-asianismo”, ideologia nacionalista nascida na década de 1920 e reescrita após o desmoronamento da União Soviética.

Fiel à tradição e aos valores cristãos ortodoxos, a doutrina reúne princípios e ideais distintos dos vigentes no chamado “mundo ocidental”.

No artigo “Um novo projeto de integração para a Eurásia; o futuro que nasce hoje”, publicado em 04.10.2011, Putin defende a criação de uma União Euroasiática — a partir da fusão de mecanismos de integração existentes e herdados da União Soviética (entre estes poderiam ser incluídos os disponíveis na CEI, citados acima) — idealizada como um dos polos de poder no mundo contemporâneo e ponte entre a Europa e a Ásia Oriental.

A teoria reafirma o que qualifica de “identidade russa”, nascida da fusão de povos eslavos e de origem turca. A Rússia seria um terceiro continente, situado entre a Europa e a Ásia. Antes de quase desaparecer no século XX, esta linha de pensamento se opunha, tanto ao Ocidente liberal, considerado decadente, quanto aos soviéticos, que baniram o cristianismo ortodoxo da Rússia, assim como seus valores tradicionais.

O presidente russo, então, adotou discurso que ressalta a ideia de “tradição”, cara à Igreja Ortodoxa russa, e recusando o multiculturalismo, o feminismo, a homossexualidade e o que chama de “valores não tradicionais” de origem ocidental.

A Rússia se define, segundo Putin, como “um modelo civilizacional”, contrastando-se com os EUA, que qualifica de poder “revisionista”, empenhado em desestabilizar o mundo promovendo mudanças de regime, especialmente no mundo árabe. O Kremlin também vê os EUA como uma fonte de instabilidade no antigo espaço soviético e culpa o Ocidente pela turbulência ucraniana.

O tratado para a criação da União Euroasiática, com sede em Moscou, foi assinado em novembro de 2011, pelos presidentes de Rússia, Belarus e Cazaquistão. O grupo deveria incluir Armênia, Quirguistão e Tajiquistão a partir de 2015.

Como se sabe, ao convencer o ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovich a renunciar à ambição de um acordo de livre comércio com a União Europeia, em novembro de 2013 — evento que detonou o Movimento na Praça da Independência, em Kiev — Putin planejava a inclusão da Ucrânia no novo bloco.

Na prática, a União Euroasiática reconstituiria a maior parte do território da URSS, cujo esfacelamento é considerado por Putin como uma das maiores tragédias do século XX. O objetivo era manter a Ucrânia sob sua influência, fazendo-a participar de seu projeto, não admitindo sua “deriva” em direção ao Ocidente.

Minsk vem-se inserindo de modo muito mais profundo na órbita russa nos últimos anos. A aproximação de Moscou tem sido conveniente para o Presidente Lukashenko, na medida em que o ajuda a contrabalançar as pressões da União Europeia e dos EUA por maior abertura política no país. A Rússia também é crucial para a Belarus, em razão das deficiências energéticas que a obrigam a importar petróleo e gás natural do vizinho, a preços subsidiados.

A importância da CEI na questão da Ucrânia

No âmbito da Comunidade de Estados Independentes, foi assinado, em 15 de maio de 1992, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva por Armênia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tajiquistão e

Uzbequistão, na cidade de Tashkent. O Azerbaijão assinou o tratado em 24 de setembro de 1993, a Geórgia em 9 de dezembro de 1993 e a Belarus em 31 de dezembro de 1993. O tratado entrou em vigor em 20 de abril de 1994.[1]

A OTSC é uma organização observadora na Assembleia Geral das Nações Unidas. Sua fundação reafirmava o desejo dos Estados participantes em se abster do uso ou ameaça da força. Os signatários não poderiam aderir a outras alianças militares — como a OTAN — ou outros grupos de estados, enquanto a agressão contra um signatário seria percebida como uma agressão contra todos.

Para tanto, a OTSC organizou, regularmente, exercícios militares entre as nações membros. O de maior escala da foi o “Rubezh 2008”, que ocorreu na Armênia. Um total de 4 mil soldados dos sete países membros da OTSC realizaram treinamento conjunto.

Apesar de seus propósitos de segurança coletiva, verifica-se, contudo, que a OTSC, no âmbito da CEI pode apresentar, apenas, um “frozen conflict” — entre Armênia e Azerbaijão — e outro que talvez venha a congelar-se — entre a Rússia e a Ucrânia — no espaço pós-soviético. Dessa forma, fazem parte da agenda de preocupações dos chamados “Grupos de Minsk” iniciativas destinadas a “conviver” com estes problemas.

Conforme sugerido acima, no entanto, o “arcabouço” disponível na referida Comunidade, poderia sondar fórmulas para o debate de temas, como, por exemplo:

- Para que, com o compromisso de não adesão ucraniana à OTAN, as convenções “adormecidas” na CEI, pudessem levar a Rússia a retirar suas tropas das regiões da Ucrânia, Donbass e outras, que ocupara em 2022. Permaneceriam estas sob a soberania da Ucrânia, mas um grau mais elevado de autonomia lhes seria garantido?

- Poder-se-ia, também, considerar o congelamento da crise na Crimeia, anexada por Moscou em 2014. Ou seja, não haveria um reconhecimento internacional de que a região passe a fazer parte da Rússia. Seria possível, contudo, não haver um questionamento sobre o fato de que, na prática, a região está controlada e administrada por Moscou?

- Haveria espaço, em compromissos assumidos no âmbito da CEI, sobre Direitos Humanos, para discutir o tema do emprego do idioma russo, por aqueles que o tenham como parte de sua cultura original? Lembra-se que não apenas a Ucrânia é habitada por tais minorias.

- Seria garantida, ainda com maior ênfase, a segurança dos membros da CEI, contra eventuais ameaças de países ou alianças militares vizinhas?

Nesse sentido, seria necessário reanimar e fortalecer a Comunidade de Estados Independentes, com sede estabelecida em Minsk, a partir de 1991.

Não saberia indicar como tal sugestão poderia ser levada à consideração dos membros da CEI. Cabe, pelo menos, torcer para que mecanismos de negociação já existentes na OTSC, no âmbito da Comunidade de Estados Independentes, sejam acionados.

Passo inicial, sem dúvida, para ativar os mecanismos adormecidos na referida Comunidade, com sede em Minsk, seria “combinar com os bielorrussos”.

Notas

[1] O TSC foi criado para durar por um período de 5 anos a menos que fosse prorrogado. Em 2 de abril de 1999, apenas seis membros da OTSC assinaram um protocolo de renovação do tratado por um novo período de cinco anos, enquanto Azerbaijão, Geórgia e Uzbequistão se recusaram a assinar, e retiraram-se do tratado de uma vez; juntamente com Moldávia e Ucrânia, formaram um grupo não-alinhado, mais pró-Ocidente e pró-EUA conhecida como a Organização “GUAM” (Geórgia, Uzbequistão /Ucrânia, Azerbaijão, Moldávia). A organização foi nomeada OTSC em 7 de Outubro de 2002, em Tashkent. Durante 2005, os parceiros OTSC realizaram alguns exercícios militares comuns. Em 2005, o Uzbequistão se retirou do GUAM, e em 23 de junho de 2006, o Uzbequistão tornou-se um participante pleno do OTSC e seus membros foram formalmente ratificados por seus parlamentos em 28 de março de 2008. (Wikipédia)

Sobre o autor

Paulo Antônio Pereira Pinto: Embaixador aposentado.


terça-feira, 30 de novembro de 2021

A questão de Taiwan e o interesse para o Brasil - Paulo Antônio Pereira Pinto

 Meu amigo e colega, Paulo Antônio Pereira Pinto, envia seu mais recente artigo publicado em Mundorama, da UNB, sobre a Questão de Taiwan e o interesse para o Brasil:


A questão de Taiwan e o interesse para o Brasil

Editoria Mundorama
Nov 30 · 10 min read

Paulo Antônio Pereira Pinto


Sobre o autor

domingo, 7 de março de 2021

Índia: reflexões sobre a situação das mulheres - Paulo Antônio Pereira Pinto

 ÍNDIA – REFLEXÕES SOBRE A SITUAÇÃO DAS MULHERES

Paulo Antônio Pereira Pinto


“Uma Passagem para a Índia era livro considerado, na década de 1920, leitura obrigatória, para quem procurasse entender os exotismos indianos. Na obra, E.M. Foster descreve sua experiência, no início do século passado, com o desencontro entre dois mundos distintos: o dos ocupantes ingleses e o dos nativos da colônia.

Tratava-se, no século passado, de ressaltar “hábitos exóticos” de culturas antigas (pois a Índia é um espaço político, onde várias delas buscam conviver em paz), em comparação com as “normas civilizadas” britânicas.

Noticiário atual sobre aquele país, no entanto, costuma relatar tragédias que afetam, de forma bárbara, mulheres indianas. 

Efetuo, a seguir, reflexões sobre duas das inúmerascondicionantes que ora influenciam a situação das mulheres na Índia. Inicialmente, trato da necessidade de projetar no exterior imagem mais favorável do tratamentoque lhes deve ser concedido, em sociedade que visa aaparecer como em fase de modernizaçãoEm seguida,recorrendo à rica mitologia indiana, registro o papel reservado às mulheres em uma das mais conhecidas de suas lendas, o Ramayana.

A emergência econômico-política em curso da Índiatem sido analisada principalmente na perspectiva de suacrescente inserção internacional, bem como a partir da cobiça quanto ao acesso de centenas de milhões de seus potenciais consumidores à oferta de produtos e serviços estrangeiros. 

Esquecido fica entre outras condicionantes, no plano interno, que este processo de crescimento recente tornanecessário lidar com a visão de prosperidade, até então restrita apenas a reduzido grupo de dirigentes tradicionais. É necessário também levar em conta a crescente participação feminina na produção de riquezas. Como decorrência da maior exposição das mulheres em atividades antes restritas aos homens, fica evidente a carência de sua proteção na sociedade.  

Prosperidade”, naquele país, parece ter adquiridoforça de uma “cultura própria”. Isto é, a Índia tem que lidar com a evolução, da cultura da pobreza e da escassez -conforme ditam muitas de suas crenças religiosas - para a idolatria da abundância.  

Receia-se, a propósito, que o dinheiro se torne o valor supremo e o consumismo a moralidade final. Sinais de alarme surgem, quando o crescente individualismo aumenta, enquanto a Índia tem sido considerada uma sociedade baseada no coletivismo. 

Em compensaçãoo processo de crescimento acelerado indiano resulta em crescente urbanização, acelerado ritmo de vida, ruptura da estrutura familiar e, entre outros aspectos favoráveis, na mudança no papel das mulheres na economia.

Do ponto-de-vista econômico, cabe reconhecer que o país conta, ainda, com 260 milhões de pobres, vivendo com o equivalente a menos de US 1 por dia. Metade das crianças morrem antes dos cinco anos. A infra-estruturalamentável e o ensino deficiente, mesmo considerando os centros de excelência existentes, inclusive na área de medicina, com a fabricação de vacinas, não facilitam a inclusão da população rural no processo de crescimento tão alardeado nas áreas urbanas.

Em Mumbai, a maior cidade, centro financeiro e comercial, onde residem cerca de 17 milhões de pessoas, estima-se que a metade viva em favelas ou nas ruas.

É necessário, portanto, definir de que Índia se fala, quando são feitas projeções de uma potência emergente. Os filmes produzidos em Bollywood não podem ser considerados como representativos do país. São um espetáculo. A riqueza dos casamentos exibidos nas películas e a alegria de suas danças não refletem a realidade da população. O que está sendo projetado no exterior é uma caricatura.

Existem, no entanto, pontos da realidade indiana atual, que fogem do contexto dos enredos filmados. . O primeiro é sobre as características gerais do cinema indiano. O segundo diz respeito a tendência recente, nesta cidade, de reverter avanços sociais obtidos desde que o nome Bombaim foi substituído por Mumbai.

Assim, cabe lembrar que o filme indiano típico é uma mistura de coreografia sensual – o que agrada à plateia masculina – e um final sempre conservador – que condiz com a expectativa das esposas e mães. Isto é, Bollywood é capaz de, em suas películas, exibir parte de ou sugerir “formas femininas”, enquanto conclui desaprovando qualquer exposição do corpo da mulher.

As audiências, na Índia, esperam que as atrizes sejam, ao mesmo tempo, sensuais e conservadoras. Quando uma delas casa – na vida real - espera-se que deixe a carreira. Quase sempre acontece assim. Em poucos casos, como o de Jaya Bachchan, retornam após o casamento para desempenhar o papel de matronas, do tipo de sogras sisudas, mas bondosas. 

Os personagens principais do cinema indiano são mais manequins de desfile, do que atores com grandes talentos dramáticos. Espera-se, portanto, que sejam, acima de tudo, muito bonitos. Em segundo lugar, devem saber dançar. Quanto às atrizes, cabe saberem conduzir com sedução, mas dentro dos limites pudicos locais, as cenas em que aparecem – invariavelmente – com o sári molhado, sobre o corpo.

Se forem capazes de atuar de forma razoável, melhor ainda – mas não é uma prioridade. O principal é provocar o imaginário popular, com cenas de riqueza, casamentos opulentos, sugestões de erotismo, sem que nada tenha a ver com a realidade da vida no país.

Logo após a independência da Índia, sua indústria cinematográfica, então no início, produziu documentários que fortaleciam o sonho da consolidação da liberdade política, do desenvolvimento econômico e da modernização. Os filmes, com frequência, tinham como cenário áreas rurais e apresentavam heróis que combatiam contra os males herdados do sistema colonial e do feudalismo.

Mais recentemente, as produções de Bollywoodpassaram a ser gravadas no exterior, sendo a Suiça um destino preferido, pelo fato de suas montanhas geladas sugerirem cenários indianos, como a Kashimira – onde, devido a situação de conflito com o Paquistão, não é possível efetuar filmagens. Como consequência, o fluxo de turistas da Índia para aquele país aumentou sensivelmente. Cingapura, Nova Zelândia, Reino Unido, África do Sul e Austrália, entre outros disputam a preferência dos produtores locais, com vistas a atrair a vinda de equipes de filmagem e a consequente divulgação de suas belezas a atrações turísticas.

Na prática, Bollywood, hoje atende à demanda de uma crescente classe média urbana representativa da maior cidade indiana que, a partir de 1996, deixou de ser chamada de Bombaim e adotou – por razões nacionalistas – o nome Mumbai.

Bombaim era, justamente, o símbolo do sonho de progresso individual, da ruptura com o rígido sistema social tradicional indiano. Aqui, predominava enorme tolerância, quanto à presença de imigrantes de outras partes do país, bem como à diversidade cultural. Praticava-se uma saudável convivência, entre comportamentos modernos – como a emancipação feminina e a diluição das castas – e a preservação de tradições – como as celebrações anuais do festival do Ganesha (deus hindu), do Ramadam (muçulmano) e de festas religiosas diversas.

Nos últimos anos, contudo, Mumbai torna-se, cada vez mais, apenas a capital do Estado de Maharashtra – perdendo os ideais típicos de Bombaim. Isto se reflete, entre outros aspectos, em crescente intolerância contra o que alguns “líderes conservadores” definem como agressão à cultura indiana.

Menciono, a propósito, experiência vivida, durante meu período como Cônsul-Geral naquela cidade, quando se comemorou, de acordo com calendário ocidental, o Dia dos Namorados (“Valentine’s Day”)Mumbai passou, então, a ser palco de declarações contra o que poderia ser identificado como “terrorismo afetivo”, pelos referidos auto- proclamados “guardiões das tradições nacionais”.

De acordo, por exemplo, comum certo “líder conservador” Sri Ram Sene, caberia exigir que as mulheres indianas usem apenas sáris, não frequentem bares, não comemorem o Dia dos Namorados e não beijem em público. Houve ameaças de agressões físicas àquelas que contrariassem tais sentenças talibãs e de queima de lojas que vendessem cartões comemorativos da data.

Como reação, formou-se o consórcio das “PubgoingLoose and Forward Women” (Mulheres que frequentam bares e adotam comportamento liberal) que se dispuserama enviar calcinhas cor de rosa para o referido líder conservador, no “Valentine’s Day”.

Desenvolveu-se, então, curioso debate, tendo, por um lado o novo símbolo das calcinhas rosas, como protestos contra ações com forte coloração contrária à emancipação feminina. Por outro, o sári – parece que, de preferência, de outra cor – permanece sendo o símbolo da feminilidade indiana.

No dia 14 de fevereiro de 2009, a “polícia ideológica” (alguns integrantes envergavam seus uniformes de policiais) espancou casais, por simplesmente estarem juntos. Assim, houve caso em que um irmão e uma irmã foram agredidos, por engano. Rapazes e moças, por estarem próximos, foram obrigados a “casar” – ou trocaram votos matrimoniais. 

Em contrapartida, na mesma data, houve vendas recordes de cartões do Dia do Namorados. O rosa tornou-se extremamente popular, inclusive para preservativos. Jovens desafiaram os que querem ditar-lhes normas de conduta ditas “culturais” e celebraram, publicamente, seu afeto mútuo.

Enquanto isso, continua sendo politicamente correto homens andarem de mãos dadas ou intimamente abraçados - parece que como forma tradicional de demonstrar amizade masculina.

 

O Papel da Mulher Indiana na Política, de acordo com a Mitologia

 

Na Índia, a cada mês de novembro, comemora-se o Diwali, uma espécie de Natal hinduísta. Durante cinco dias, portanto, é marcado na Índia o “festival das luzes”.

Em Mumbai, o principal motivo de comemoração é a lenda sobre o retorno de Lord Rama ao Reino de Ayodhya, com sua esposa Sita e seu irmão Lakshmana, após a vitórasobre o “Rei Demônio Ravana”, de dez cabeças, há cerca de três mil anos.  

Ramayana, que narra a saga de Rama, é um dos textos mais antigos da Índia e, tendo sido escrito há mais de três mil anos, permanece imensamente popular. Tem fascinado inúmeras gerações (encarnações) indianas. Não resta dúvida, quanto ao mérito literário da obra, que justifica, em parte, sua sobrevivência. 

Da mesma forma que em outras epopéias, o foco é uma sequência de incidentes na vida do herói da narrativa: Rama. Existe, no texto, ademais, enorme riqueza de personalidades e eventos, bem como fantasias do tipo de carruagens que voam, macacos, aves e outros animais que falam, dramas como o sequestro da esposa de Rama, Sita, e o fato de o Rei ter que determinar o exílio de seu filho querido.

Acima de tudo, o Ramayana representa a celebração de emoções e ideais. Assim, ressalta-se o profundo amor filial de Rama, a devoção de sua esposa a ele, a aliança incondicional de seu irmão Lakshmana. Tais sentimentos fortes têm afetado os leitores, através dos sucessivos momentos de turbulência e incertezas que afetaram a longa história da Índia.

Em resumo, o enredo do poema desenvolve-se em período durante o qual, dois poderosos reinos, o dos Kosalas e o dos Videhas, predominavam no Norte da Índia, entre os séculos XII e X A.C. Segundo a narrativa, o Rei Dasaratha, dos Kosalas, tinha quatro filhos – com diferentes esposas – o mais velho dos quais, Rama, é o herói da história. De sua parte, o Rei Janak, dos Videhas, tinha uma filha, Sita, que se torna a heroína da trama.

Então, o Rei Janak, para escolher entre os pretendentes à mão de sua bela filha Sita, determinou que apenas aquele capaz de empunhar um arco cravado no chão seria o eleito. Como esperado, o heróico Rama realizou a proeza e, portanto, casou com Sita. Nada sendo perfeito, grande intriga foi urdida por uma das esposas do Rei Dasaratha – pai de Rama – obrigando o monarca a coroar, como seu sucessor, não o filho mais velho – Rama – mas um de seus irmãos mais moços – Bharata .

Ademais, a referida Sra. obteve a promessa real de que Rama seria enviado ao exílio, durante quatorze anos. Obediente à ordem paterna – como deve ser um bom hinduísta, destinado a servir de exemplo de subserviência filial por milênios do porvir – nosso herói partiu para a floresta, acompanhado por Sita e pelo irmão Lakshmana

No capítulo seguinte, o Rei Dasharatha – pai de Rama – falece, arrependido de ter tratado seu primogênito daquela forma, e o trono deve passar para o filho Bharata, que reconhece sua incompetência para administrar os assuntos de Estado e resolve apelar para que Rama assuma todos aqueles problemas. Este – no espírito de preservar a obediência ao desejo paterno, já assinalado acima, sem saber do arrependimento final do pai – recusa, afirmando que iria cumprir a tal punição de quatorze anos. Bharata, então, decide levar consigo as sandálias de Rama, como símbolo de respeito ao irmão mais velho. 

Começa, então, uma alegoria digna a fazer inveja aos desfiles de Escolas de Samba no Rio de Janeiro. Entra em cena uma tribo de demônios, que se relacionam com um Rei de dez cabeças, Ravana, desfilam uma ave e um veado que falam. Sita é sequestrada. Torna-se, então, como mencionado no início desta coluna, símbolo da fidelidade e devoção que uma esposa indiana deve ter, como exemplo para as gerações (encarnações) futuras.

Felizmente, entra em cena um reino de macacos falantes, que ajudam Rama a resgatar Sita. Nesse processo teria sido criada a controvertida ponte de rochas que liga a Índia ao atual Sri Lanka, objeto atual de discórdia política. A apoteose ocorre com combate final, entre Rama e Ravana, que, cada vez que tinha uma cabeça cortada, lhe nascia uma outra, até que nosso herói descobre um ponto vital, no pescoço do monstro e lhe atinge com uma flecha. Assim encerrada a tragédia, Rama e Sita retornam ao Reino de Ayodhya.

Então, em função, principalmente, deste retorno triunfal, é celebrado em Mumbai, e outras cidades indianas, o “Festival das Luzes” ou  Diwali. Neste contexto, são louvadas virtudes de devoção familiar (dharma)  submissão ao destino (kharma). 

Para os críticos da devoção a Rama, fica o argumento de que todo o sistema de castas indianas seria justificado pela narrativa. Isto porque, a legitimação do poder monárquico, enquanto prevaleceu como forma de governança na Índia, teria sido a principal função do Ramayana. Assim, quando Rama retorna à capital de seu reino, prontamente retoma a forma absolutista de governar.

Segundo, a propósito, a concepção histórica do Estado indiano – em análise reconhecidamente simplificada - o reinado não tem origem divina, de “mandato celestial”, como na China antiga. Pelo contrário, o Estado era uma demonstração e reflexo de poder pessoal do próprio rei – isto é, uma personalidade forte capaz de unificar regiões díspares, de forma tirânica, sempre sob a ameaça de desintegração. Tudo o que era exigido era uma determinação de talento superior, capaz de manter o indivíduo no poder.

Em contrapartida, o Imperador chinês, por exemplo, foi, durante séculos, reverenciado como o “Filho do Céu”(tíen-tse) e era suposto personificar os princípios da realeza, através de rituais religiosos. Tratava-se do mediador entre o céu e a terra. Caso houvesse derrota, fome ou catástrofes, e ele mesmo fosse derrubado, isto seria atribuído à perda do Mandato Celestial, decorrente de alguma deficiência pessoal. O usurpador do poder, então, a seu turno, passaria a reivindicar tal mandato, a ser herdado por sua nova dinastia.

Os Reis Hindus não contavam com tal mandato. Apenas uma deusa, de menor estatura, Sri Lakshmi, era tida como protetora do sucesso e continuação do poder. Ela escolheria seu protegido e, temporariamente, reencarnaria em sua pessoa. Fosse este derrotado, ela, chorosa, passaria a proteger o novo vencedor. Sri Laksminada tinha a ver com a virtude. Apenas com a política e a evolução cíclica dos tempos. A filosofia dos reis e poderosos, na Índia, portanto, era fatalista, cética e realista.

No Dia da Mulher, cabe concluir clamando que, na Índia, a Lei Maria da Penha peça passagem.