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quarta-feira, 24 de abril de 2024

O Brasil e a Defesa nacional - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

O Brasil e a Defesa nacional 

Rubens Barbosa 

O Estado de S. Paulo, terça-feira, 23 de abril de 2024


Congresso e sociedade têm de olhar para o futuro e concentrar seus esforços no fortalecimento do Ministério da Defesa, chefiado por um civil, e na modernização das Forças Armadas


A História nos ensina que alguns fatos, de natureza simples, podem se transformar em marcos divisores na vida dos países, com fortes consequências para as futuras gerações. São fatos que se tornam simbólicos por representar uma mudança de atitude, de comportamento e de trajetórias que caracterizaram a vida política até aquele momento.

O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar definitivamente, por unanimidade (11 a 0), que o artigo 142 da Constituição federal não comporta a interpretação de que as Forças Armadas representam um Poder Moderador entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, criou um fato histórico. A decisão pode ser considerada como uma virada de página no longo e conturbado relacionamento entre civis e militares ao longo dos últimos 120 anos no Brasil.

Desde a Proclamação da República até 1985, a interferência e participação dos militares na política foi fator de instabilidade interna e de restrição à democracia no País. As Forças Armadas, como instituição de Estado, nos últimos 40 anos, em especial nos últimos cinco, ao contrário do que ocorreu no passado, não assumiram uma posição ideológica e evitaram interferência que pudesse ameaçar o Estado Democrático de Direito, como estimulado pelo governo anterior. Essa mudança de atitude – de espécie de tutela da Nação para o grande mudo – reforça a percepção de que a decisão do STF possa ser vista como histórica.

Virada a página da cultura intervencionista na relação entre civis e militares, o Congresso Nacional e a sociedade, via instituições civis especializadas e as organizações militares, têm de olhar para o futuro, com visão estratégica, e concentrar seus esforços no fortalecimento do Ministério da Defesa, chefiado por um civil, e na modernização das Forças Armadas.

A modernização das Forças Armadas não deve ser vista como uma questão dos militares, mas da sociedade em geral. A capacidade militar deve ser entendida de forma ampla, pois ela não depende apenas da capacidade operacional de combate, exercida por um importante instrumento de defesa, que são as Forças Armadas. Não se pode mais adiar o exame de ampla transformação no modo de operar das três Forças no tocante à capacidade de logística de defesa, responsável pelo desenvolvimento e fornecimento dos meios de que as Forças Armadas precisam para compor suas unidades de combate e para sustentar seu emprego em combate. Sem ela, como ocorre agora, as Forças Armadas deixam de operar eficientemente.

A logística de defesa teria de se modernizar do lado da oferta, provida pela Base Industrial de Defesa (BID), em particular por uma parte que deve ser considerada estratégica; e do lado da demanda, constituída por uma organização do Estado responsável por aquisições e políticas industriais e de CT&I para desenvolver e sustentar a BID estratégica. Sem uma capacidade de logística de defesa própria, é impossível a um país das dimensões do Brasil ter capacidade militar eficiente.

No contexto de um mundo em profundas transformações geopolíticas, científicas e tecnológicas, com enorme impacto nos esforços brasileiros para alcançar objetivos estratégicos relacionados ao seu desenvolvimento econômico e social e, também, na preservação de sua soberania e independência e na projeção externa, torna-se urgente estabelecer uma agenda positiva para a Defesa Nacional de curto, médio e longo prazos, que responda aos desafios externos atuais e futuros.

No curto prazo, a agenda deveria incluir, entre outros aspectos, o fortalecimento da BID por meio de sua crescente nacionalização, atuação vigorosa do BNDES e do Banco do Brasil para o financiamento do comprador de produtos da BID e para a outorga de performance bonds a empresas de defesa.

No médio prazo, deveriam estar incluídos os meios à disposição do Ministério da Defesa, via previsibilidade orçamentária (vinculada ao PIB) e manutenção dos investimentos para conclusão dos atuais projetos especiais das Forças Armadas, a fixação em lei de incremento gradual de investimentos em defesa, a revisão da assimetria quanto à imunidade tributária das importações de defesa, apoio a projetos das Forças Armadas com forte conteúdo científico e tecnológico, treinamento, pesquisa e cooperação técnica, e, depois de estudos apropriados, a criação de órgão para cuidar da logística da Defesa.

No longo prazo, incluiria a política de reaparelhamento das Forças, a redução do custo com pessoal (ativa e reserva) e significativa autossuficiência em altas tecnologias críticas para o desenvolvimento dos produtos de defesa considerados estratégicos.

A grande vulnerabilidade do Brasil na área da Defesa é sua reduzida base industrial de defesa, incapaz de atender às necessidades de suas Forças Armadas. Quase todos os meios existentes e/ou os seus principais componentes e tecnologias críticas são comprados no exterior e fornecidos por países da Otan. Os gastos em defesa no Brasil representam 1,1% do Orçamento geral da União, com cortes adicionais recentes (R$ 419 milhões) e apenas 7% dirigidos a investimentos e à compra de armamentos.

O Brasil, no contexto da nova política industrial, necessita empreender imediatamente um grande e continuado esforço para desenvolver e fortalecer, da forma mais autônoma possível, sua capacidade militar. 


terça-feira, 9 de abril de 2024

O Brasil tem problemas demais para ter pensamento estratégico- Rubens Barbosa (OESP)

AMBIÇÃO EXTERNA SEM PENSAMENTO ESTRATÉGICO

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 9/04/2024


No Brasil, os problemas sociais, pobreza, concentração de renda, falta de recursos para o Estado, gastos desnecessários e duplicados, déficit público, déficit educacional e cientifico e tecnológico, sem falar nos privilégios, nos problemas da segurança pública, na violência e na corrupção, segurança jurídica para garantir investimentos, para citar os mais dramáticos, deixam pouco espaço para um pensamento de meio e longo prazo, verdadeiro esforço estratégico para um país do porte do Brasil, potência média, a nona economia do mundo, com interesses importantes a preservar na área do agronegócio e com grandes deficiências e vulnerabilidades na área industrial e, sobretudo, de Defesa, pelo baixo aproveitamento dos avanços da tecnologia.

 

O mundo mudou e hoje as preocupações com a Defesa são prioritárias. No meio de duas guerras, na Europa e no Oriente Médio, 58 conflitos localizados em 35 países e, na nossa vizinhança, a ameaça bélica da Venezuela contra a Guiana, o Brasil não pode se dar ao luxo de ignorar esse pensamento estratégico.

 

A falta de uma visão estratégica tornou-se trágica para o ambiente da Defesa Nacional e para um projeto nacional, exemplificado agora com o anúncio da venda da AVIBRAS, empresa líder de tecnologia de ponta no lançamento de foguetes. Com problemas de gestão que se arrastam a mais de ano, com dívidas acumuladas, o governo Lula ao assumir, tentou encontrar uma fórmula para preservar a empresa nacional, sem sucesso.

 

Caso se concretize a venda da AVIBRAS, será a terceira empresa de grande porte e significado na Defesa que o Brasil perde, depois da Engesa (carro de combate) e da Mectron SIATT (míssil naval). Em comunicado, a Avibras e a empresa australiana Defend Tex informaram que vem mantendo tratativas para viabilizar a recuperação econômica-financeira da empresa para manter suas unidades fabris no Brasil, retomar as operações e manter o fornecimento previsto nos contratos. Apesar do grave dano à soberania, com a desnacionalização da empresa, a operação conta com a boa vontade do governo e das autoridades do Ministério da Defesa (MD), inclusive dos comandantes das três Forças.

 

O Centro de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN), junto com a ABIMDE, apresentaram proposta ao MD que poderia ser uma saída para a Avibras. Sugeriu-se a criação da Empresa Crítica de Defesa (ECD), visto que uma análise de risco observando impacto com a descontinuidade de operações ou com a perda do controle nacional mostra que certas empresas são Críticas para o presente e futuro da país. A proposta é simples e direta: Criação, por lei, da classificação adicional de ECD, que se somaria às Empresas Estratégicas de Defesa (EEDs) e Empresas de Defesa (EDs). Para se tornar ECD a empresa deveria ser uma EED. Uma análise de risco deveria apontar que a sua descontinuidade possuiria impacto significativo imediato e de longo prazo em áreas estratégicas e de interesse da Segurança Nacional (e não somente Defesa Nacional). O Estado deveria se organizar para realizar aquisições mínimas periódicas das ECD de forma manter a capacidade de P&D e produtiva ao menos com carga mínima, evitando-se assim a sua desmobilização. Como contrapartida, as ECD deveriam estar sujeitas a intervenção técnico-econômica direta da União em caso de iminência de perda de controle nacional ou de severo desarranjo econômico. Os mecanismos precisariam ser discutidos, mas poderiam incluir a criação de Golden Share, inclusive sendo este uma forma de aporte financeiro.

 

Segundo a legislação vigente, a lei 12.598, determina que, em EED, o controle fique restrito a 40% dos votos, além de desenvolver tecnologia nacional. Aparentemente, não foi isso o que ocorreu. A legislação deveria ser aplicada, mas pode deixar de ser por não existir um responsável por desenvolver e sustentar uma Base Industrial de Defesa estratégica para o país

 

Algumas sugestões apareceram para tentar contornar a questão das dívidas crescentes da companhia que parou de fornecer equipamento ao exterior e enfrenta ameaça de paralização total. A última instância seria estatizar a empresa em troca da dívida tributária sem colocação de recursos públicos ou controle administrativo para empresas, mas não teve apoio de Lula.

 

Essa transação ocorre quando o MD discute a atualização da Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa, embora a questão da Avibras certamente não tenha sido colocada no contexto mais amplo da capacidade de Defesa do país. Os interesses divergentes no contexto do establishment militar brasileiro não permitem ainda o entendimento de que a capacidade militar tem dois componentes essenciais. Capacidade operacional de combate, providas pelas FFAA e capacidade logística de defesa, provida pelas sinergias entre um órgão do Estado que gere a demanda por produtos e tecnologia de defesa e uma BID estratégica, sem a qual as FFAA não podem operar e mesmo existir. As FFAA exigem uma reforma estrutural para se modernizar e apoiar a indústria nacional de Defesa.

 

O assunto transcende as competências do Poder executivo e deveria merecer a atenção do Congresso já que envolve questões de Defesa e Segurança Nacional.

 

Rubens Barbosa, presidente do Centro Estudos de Defesa e Segurança Nacional (CEDESEN)


terça-feira, 26 de março de 2024

Projeto Mejuruá: desenvolvimento sustentável, preservação da floresta amazônica - Rubens Barbosa O Estado de S. Paulo

Projeto Mejuruá 

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 26/03/2024

Segundo alguns levantamentos há cerca de 60 projetos de preservação de florestas, dos quais18% localizados na região amazônica. A mudança da política brasileira em relação à Amazonia, combatendo os ilícitos nas queimadas, no desmatamento e no garimpo ilegal, de um lado e, de outro, procurando dar assistência às comunidades de povos originários, favorece iniciativas de bioeconomia para trazer o desenvolvimento econômico e social a toda região.  

Muito se tem discutido sobre a responsabilidade das empresas na sustentabilidade ambiental e na preservação do meio ambiente. Poucos são os projetos realmente inovadores. Ainda menor é o número de projetos importantes que combinam a conservação da floresta amazônica, com a preocupação social, ao levar em conta os interesses das comunidades da região.

Um dos projetos mais inovadores anunciados publicamente é o projeto Mejuruá de conservação florestal, localizado nos municípios de Carauari, Juruá e Jutaí, no coração da região centro oeste do Estado do Amazonas. A cidade de Carauari, com cerca de 30.000 habitantes é contígua a área conhecida como Fazenda Gleba Santa Rosa de Tenquê. A área é privada, estendendo-se por mais de 903.000 hectares de floresta tropical amazônica, riquíssima em biodiversidade. O manejo sustentável da floresta será efetivado em 160.000 hectares, cerca de 18% da propriedade, a ser operado ao longo dos próximos 30 anos. Concebido no contexto da iniciativa REDD+, o projeto, nestes 30 anos, deverá evitar a emissão de perto de 82 milhões de toneladas de COequivalente.

 A principal característica do projeto é a combinação entre a conservação da floresta, a preservação da biodiversidade e as iniciativas sociais em favor das comunidades locais, contribuindo para reduzir o desafio da mudança do clima, conter o aquecimento global reduzindo as emissões de gás de efeito estufa e apoiar atividades econômicas que possibilitem a melhoria do nível de vida na região.

O plano de ação que está sendo implementado apresenta três vertentes: proteção da natureza, apoio às comunidades locais, inclusive indígenas, e desenvolvimento socioeconômico, sempre respeitando a ecologia. A parceria com as comunidades locais será efetivada para melhorar a infraestrutura e o uso de tecnologia, ênfase na educação, na geração de emprego e no estímulo à vida comunitária. Estão previstos investimentos da ordem de algumas dezenas de milhões de dólares, apenas na área social.

            Assim, o fortalecimento da proteção e o monitoramento da área visam a manter a floresta em pé, promover a economia verde baseada em produtos da biodiversidade e do trabalho local tradicional. Com o desenvolvimento, a potencial parceria econômica com as comunidades locais e o valor ambiental da floresta amazônica, gerarão benefícios para os habitantes locais e serão aproveitados por todas as comunidades ribeirinhas e vizinhas nas áreas protegidas e seu entorno, com a criação de empregos, geração de energia verde e a proteção à biodiversidade na fauna e na flora. O plano social está sendo implementado com a construção ou melhoria das habitações, educação, água potável, assistência à saúde, energia elétrica e acesso à internet. A criação de empregos será decorrência do manejo florestal sustentável e do desenvolvimento industrial para beneficiamento da madeira e planta de energia de biomassa, além de  outras atividades econômicas (bens e serviços). Entre diretos e indiretos, serão criados de 2.000 a 3.000 novos empregos no local, com diferentes níveis de qualificação.

            O projeto deverá também contribuir com o Estado para a implementação de políticas de desenvolvimento econômico na região, por meio de convênios de colaboração firmados nas esferas estadual e municipal, apoiando a sua implementação e definindo atividades a serem tocadas a quatro mãos, entre governo e iniciativa privada. Não menos importante tem sido o engajamento com entidades não-governamentais, inclusive as locais.


Do ponto de vista econômico, o projeto gera recursos com a criação na área de instalações industriais para o processamento da madeira originária do manejo sustentável da floresta e do extrativismo explorado diretamente pelos ribeirinhos, principalmente a pesca, além do aproveitamento dos recursos da biodiversidade, como o açaí, cuja cadeia de valor será apoiada pelo projeto em benefício das famílias dedicadas à sua coleta e processamento. A preservação da floresta possibilitará a utilização de créditos de carbono gerados pela redução da emissão de gás de efeito estufa. No seu conjunto, o projeto apresenta um perfil econômico autossustentável.


Para alcançar a proteção ambiental e outros objetivos da agenda ESG, o projeto adotou padrões internacionais e está se qualificando para várias certificações, inclusive da VERRA e da PEFC.

            O projeto foi concebido e está sendo implementado pela BR ARBO Gestão Florestal, companhia brasileira especializada na gestão de sustentabilidade florestal, com presença e cooperação das comunidades locais. Conta com o apoio estratégico e econômico de um grupo investidor europeu, sob a liderança do empresário Gaetano Buglisi.

            Um paradigma a ser replicado na Amazônia e em outras regiões.


Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE) e Membro da Academia Paulista de Letras.

terça-feira, 12 de março de 2024

Itamaraty não improvisa - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

Itamaraty não improvisa
Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo | Espaço Aberto

12 de março de 2024 

Tornou-se um lugarcomum o comentário de nossos hermanos latino-americanos sobre a ação diplomática do Ministério das Relações ExterioresItamaraty no improvisa. Essa frase refletia a percepção de que o Itamaraty, com um quadro altamente qualificado de servidores, sabia manter a continuidade da política externa e renová-la com o passar do tempo, fazendo os necessários ajustes para a defesa dos interesses nacionais.

Nos últimos 20 anos, a formulação e a execução da política externa têm passado por um processo disfuncional em que os interesses nacionais são confundidos com interesses setoriais e políticos. Gradualmente, a política externa passou a sofrer interferências ideológicas e partidárias que a afastam dos interesses do Estado brasileiro. Um recente ministro do exterior aceitou que o Brasil fosse considerado um pária internacional por defender posições políticas vigentes no governo.

Itamaraty é o principal assessor do presidente da República para a formulação e execução da política externa e sempre foi o órgão que coordena a participação do Brasil, tanto no âmbito bilateral quanto nos organismos multilaterais. Com alternância de governos, é normal haver mudanças de ênfases e prioridades na política externa.

O problema hoje é que, com as mudanças internas na política brasileira, o Itamaraty vem sofrendo um continuado processo de esvaziamento.

Ao longo dos últimos cinco anos, o Itamaraty perdeu espaço em temas como comércio exterior (mesmo no Mercosul), meio ambiente e mudança do clima, agenda de costumes, direitos humanos, entre outros.

No governo atual, o Itamaraty começou perdendo a Apex e enfrentou, com limitado sucesso, o desafio de tentar coordenar as ações externas das pastas de Meio Ambiente, Direitos Humanos, Mulheres, Igualdade Racial e povos indígenas. Além disso, quando ocorre uma duplicidade de influência na formulação e execução da política externa, o desempenho diplomático fica afetado, como ocorreu no governo Bolsonaro e está ocorrendo no atual governo.

A situação tem-se agravado pelas ações e pronunciamentos improvisados dos presidentes Bolsonaro e Lula no tratamento de delicadas questões externas, com claros objetivos de política interna (convocação de embaixadores para ouvirem críticas às urnas eletrônicas e o tratamento dado a regimes autoritários na região, em especial a Venezuela). Sem preocupação com a repercussão internacional, as declarações mostram inconsistências da política externa, põem em risco sua credibilidade e prejudicam a ação diplomática na defesa do interesse nacional.

A projeção internacional do Brasil é, em grande parte, resultado da atuação diplomática tanto bilateral como, sobretudo, multilateral. Num mundo em grande e rápida transformação e com as polarizações internas, as prioridades definidas pelo governo Lula são corretas e representam o que se espera da nona economia do mundo. Ter voz no cenário internacional, influir nas discussões sobre meio ambiente e mudança do clima e ter uma política afirmativa na América do Sul são políticas que interessam ao País, e o Itamaraty continua a executar um trabalho sério e competente, como instituição.

A questão que se coloca é como ajustar o soft power brasileiro nas áreas em que se reconhece sua influência (meio ambiente, segurança alimentar, transição energética) e suas limitações pela ausência de excedente de poder (o Brasil não é uma potência militar). A ausência de resultados na pretensão de criar um grupo para acelerar a busca da paz na guerra da Ucrânia, na proposta para o cessar-fogo em Gaza durante a presidência brasileira no Conselho de Segurança da ONU, em ser uma ponte entre os países desenvolvidos e o Sul Global ou influir na modificação da governança global (composição do Conselho de Segurança da ONU) mostra os limites da influência do Brasil no cenário internacional. Em algumas dessas ações, a chancelaria não foi ouvida ou, se foi, a instituição deve ter-se colocado contra, mas a decisão foi tomada sem o conselho do Itamaraty.

A nova economia (menos liberalismo e mais protecionismo) e a nova ordem internacional em constante mutação pelo impacto das guerras na Europa e no Oriente Médio, pela competição entre as duas maiores potências globais, pela rápida evolução tecnológica, com reflexos na geopolítica, estão forçando todos os países a se ajustar às novas demandas e novas realidades. O fator externo hoje não pode mais ser ignorado na definição das políticas econômica, financeira, de defesa e, para países como o Brasil, da política externa. A experiência do Itamaraty, reconhecida internacionalmente e agora percebida com baixa credibilidade por sua reduzida influência, não pode ser deixada de lado. A tradicional política definida pelo Itamaraty de equilíbrio e equidistância, sem tomar partido nas questões que dividem os países e na defesa do interesse brasileiro, deveria voltar a ser seguida e reforçada, acima de considerações ideológicas e partidárias.

Itamaraty deve fazer valer sua competência e seu espírito público para enfrentar o desafio de recuperar o papel central de coordenação em temas que impactem a projeção do Brasil no mundo. Os governos de turno não podem improvisar na política externa. 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Comércio Exterior de 1 trihão de dólares - Rubens Barbosa (OESP)

                     COMÉRCIO EXTERIOR DE 1 TRILHÃO DE DÓLARES

Rubens Barbosa, 

O Estado de S. Paulo, 27/02/2024

 

O comércio exterior brasileiro ultrapassou meio trilhão de dólares em 2023. A notícia foi saudada com um grande sucesso do comércio brasileiro no mundo. A corrente de comércio subiu a mais de US$ 580 bilhões, com US$339,7 bilhões de exportação, com um aumento de 1,7% em relação a 2022, e US$ 240,8 bilhões de importação, com queda de 11,7, em relação a 2022. O superavit recorde chegou a US$ 98,8 bi. crescimento de 60% em relação a 2022 (mais da metade com um único país, China). O Brasil se consolidou como um dos maiores exportadores mundiais de alimentos e minério com mais de 18% e 26% das exportações totais do país respectivamente. Cresceu o número de empresas exportadoras, que hoje chegam a 28.500. Acentuou-se a importância do mercado asiático (mais de 50% das exportações totais), em especial o da China, Hong Kong e Macau, que representaram US$ 105,75 bi, mais de 30% das exportações totais brasileiras.

 

O comércio exterior se beneficiou de medidas tomadas pelo governo em 2022 para desburocratizar procedimentos e reduzir custos das transações. O BNDES voltou a apoiar as exportações aumentando a competitividade dos produtos nacionais. A promoção comercial e a cultura exportadora foram fortalecidas por ações da APEX e SEBRAE. Acordos de comércio, como o assinado com Singapura, e o de liberalização e simplificação com os EUA, inclusive com o fim da sobretaxa as exportações brasileiras de aço, foram positivas. A reforma tributária contribuirá para a melhoria da competitividade.

 

Como disse o Vice-Presidente e Ministro do MDICS, Geraldo Alkmin, “os resultados nos desafiam a fazer mais para abrir novos mercados e melhorar a competitividade e incluir produtos de maior valor agregado”.

 

Os desafios para o comércio exterior brasileiro vão além do que corretamente mencionou o ministro Alckmin. Os números realmente impressionantes geraram um sentimento ufanista (Brasil celeiro do mundo), mas escondem vulnerabilidades que um país do porte do Brasil (9ª. Economia global) não poderia aceitar, em função das incertezas geradas pelas transformações da economia e da geopolítica global.

 

A dependência do agronegócio para o sucesso econômico do país preocupa pelo fato de o setor agrícola se ter tornado o motor da economia. Os EUA e a Europa também são grandes produtores agrícolas, mas o setor industrial tem sua força própria, ao contrário do que ocorre no Brasil.

 

A concentração no comércio exterior brasileiro de poucos produtos (soja, petróleo e minério de ferro representam 37% das exportações, 5 produtos (incluindo açúcar e milho), 46% e 8 produtos, 2/3 do total exportado) e poucos mercados (Asia, Oriente Médio e Norte da África, representam 65% do total exportado) expõe o crescimento da economia, caso haja desaceleração do mercado externo (em especial o da China) e redução da produção agrícola nacional por fatores climáticos, como está ocorrendo este ano. A China concentra 75% das exportações da soja nacional.

 

As transformações da nova economia global criam outros tipos de vulnerabilidade, em consequência da ênfase em políticas industriais nos países desenvolvidos e crescentes restrições externas para garantir autonomia soberana em virtude das mudanças geopolíticas e para atender as novas prioridades de políticas ambientais, como as medidas tomadas na Europa para eliminar as importações de produtos agrícolas provenientes de áreas desmatadas e as taxas de carbono (CBAN).

 

A crescente perda de importância do setor industrial, em termos de PIB, (que chegou a ser 28% do PIB e que agora, na indústria de transformação, pouco passa de 10%) fez cair o nível de investimento interno e as importações se reduziram significativamente (11%). A participação de produtos manufaturados brasileiros no mercado internacional está pouco acima de 0,5%).

 

Vulnerabilidade adicional da área externa é a ausência de um instrumento de financiamento das exportações. Como todos os principais países, urge a criação de um Eximbank para apoiar uma politica de ampliação dos mercados na América Latina e na África, inclusive com a criação de cadeias regionais de produção de valor e com o necessário respaldo para os produtos da indústria de Defesa.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  

 

O governo divulgou as linhas gerais de um programa de política industrial para fortalecer o setor e torná-lo mais competitivo no mercado externo. Com metas até 2033, o plano dá grande ênfase ao papel do governo, como estão fazendo os EUA e países europeus. Subsídios e conteúdo local aparecem ao lado de incentivos, linhas de crédito e compras governamentais em seis setores, entre os quais saúde, defesa, infraestrutura, saneamento, mobilidade. Transformação digital da indústria, bioeconomia, descarbonização e transição energética são prioridades para a modernização do setor.

 

Com maior valor agregado, o aumento das exportações dos produtos industriais reduziria a dependência da economia do setor das commodities, agrícolas, minerais e energéticas. Dado o potencial de crescimento do comércio exterior em função do dinamismo do agronegócio e da recuperação gradual da competitividade industrial, caso as vulnerabilidades sejam reduzidas, será possível colocar como meta de US$ 1 trilhão nos próximos 5 anos, com a coordenação entre governo e setor privado.

 

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comercio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras

 

 

 

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

A questão palestina - Rubens Barbosa (Estadão)

 A QUESTÃO PALESTINA

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 13/02/2024

       

        Continua a crescer a pressão da opinião pública mundial por uma solução a médio e longo prazo para a dramática situação no Oriente Médio, a fim de evitar a escalada do conflito entre Israel e Hamas e de buscar um entendimento que permita a estabilização política, econômica e militar na região.

       Os altos custos do apoio militar para a Ucrânia e a aproximação da eleição presidencial nos EUA, com forte impacto negativo à candidatura de Biden, são agravados, no curto prazo, pela multiplicação dos incidentes militares, com o risco da situação sair do controle, e pela necessidade de garantir a segurança de Israel e a viabilização do Estado Palestino.

        Com esse pano de fundo, o governo de Washington lançou um balão de ensaio com o vazamento de um esboço de proposta por meio de comentários no New York Times e no The Economist, com grande repercussão.

        Segundo se noticia, estaria havendo conversas sigilosas no sentido de viabilizar um amplo plano de paz - hoje de difícil aceitação por todas as partes envolvidas -, mas que poderá, com concessões de todos, tornar possível vislumbrar uma luz no fim do túnel, caso a posição do governo norte-americano se mantenha firme e os entendimentos se intensifiquem.

        Assim, a política dos EUA em relação a região parece estar evoluindo. O presidente Biden anunciou inéditas sanções contra colonos israelenses que promovem violência contra palestinos na Cisjordânia. Thomas Friedman, no New York Times, prevê uma nova “Doutrina Biden” para o Oriente Médio. As linhas principais dessa nova política americana passariam por uma atitude firme em relação ao Irã, por uma forte pressão sobre Israel, para que aceite a criação de um Estado Palestino, e pelo fortalecimento da aliança com a Arábia Saudita, que reconheceria diplomaticamente Israel. The Economist acrescenta que, em meio a intensa ação diplomática, lideradas pelos EUA e Arábia Saudita, o plano estaria tomando forma, a partir das negociações para a liberação dos reféns em poder do Hamas, (Netanyahu recusou a  última proposta do Hamas), para modificar a política interna israelense e permitir a possibilidade de criação do Estado Palestino.

        O primeiro passo seria uma posição dura em relação ao Irã, incluindo uma retaliação militar robusta contra aliados e agentes do Irã na região (Houthis, ISIS e outros grupos) em resposta às mortes dos três soldados americanos em uma base na Jordânia, por um drone aparentemente lançado por uma milícia pró-Irã ativa no Iraque. O segundo eixo consistiria em uma iniciativa diplomática sem precedentes, para promover um Estado palestino, que envolveria alguma forma de reconhecimento pelos EUA de um Estado palestino desmilitarizado na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, que passaria a existir somente depois que os palestinos tivessem desenvolvido um arcabouço de instituições definidas e críveis, assim como capacidades de garantir que esse Estado seja viável e incapaz de ameaçar Israel. O governo norte-americano estaria mantendo consultas dentro e fora do governo americano a respeito das diferentes formas que esse reconhecimento do estatuto de Estado dos palestinos poderia assumir. O terceiro eixo seria uma aliança de segurança ampliada dos EUA com a Arábia Saudita que também envolveria a normalização das relações dos sauditas com Israel, com reconhecimento mútuo e com garantias de segurança respaldadas pelo governo norte-americano. Seria a retomada dos entendimentos entre a Arabia Saudita e Israel (acordo de Abraão) para o reconhecimento do Estado de Israel, se o governo israelense estiver preparado para aceitar um processo diplomático que leve a criação de um Estado palestino desmilitarizado, liderado por uma Autoridade Palestina fortalecida.

       A primeira fase está em curso com os ataques dos EUA aos grupos terroristas no Iraque, na Síria e no Yemen. Como nem os EUA, nem o Irã, nem os países do Golfo querem uma escalada da guerra na região, a fase inicial teria de ser concluída com o controle dos grupos terroristas financiados por Teerã. As conversas reservadas entre EUA, Arabia Saudita, Irã e Israel mostrarão se as duas etapas seguintes da estratégia serão viáveis a médio prazo.

         O ataque terrorista de 7 de outubro contra Israel e seus desdobramentos estão forçando uma reformulação fundamental na maneira como a questão do Oriente Médio deve ser tratada. Se vencer as resistências, a Doutrina Biden produzirá um equilíbrio geopolítico e políticas domésticas mais seguras. Essa estratégia poderia dissuadir o Irã, tanto militarmente, quanto politicamente, ao tirar a carta palestina de Teerã. Poderia promover o estatuto do Estado palestino em termos consistentes com a segurança israelense e, simultaneamente, criar condições para a normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita, em termos que os palestinos possam aceitar. Mas para que a questão seja bem-sucedida é indispensável que esses três eixos estejam assegurados e interconectados. O plano promete uma nova arquitetura econômica e de segurança no Oriente Médio. Essa estratégia poderia se tornar o maior realinhamento estratégico na região desde o tratado de 1979 em Camp David.

 

Rubens Barbosa, ex-embaixador em Washington, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras

       

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Brasil deve rever posição em relação à Venezuela - Rubens Barbosa (editorial do portal Interesse Nacional)

 

Rubens Barbosa: Brasil deve rever posição em relação à Venezuela


Governo Maduro descumpriu acordo por eleições livres, e EUA retomaram sanções contra o país, enquanto o governo Lula mantém silêncio. Para embaixador, chegou o momento de o Brasil assumir uma nova postura crítica em relação ao país, sendo coerente com a defesa da democracia na política interna.

' O governo americano declarou que a medida do Tribunal contradiz o acordo de Barbados e anunciou a retomada das sanções contra a Venezuela’
‘A decisão da Justiça eleva a tensão no cenário político interno na Venezuela’

'O governo Lula agora fica em posição delicada pois foi um dos que patrocinaram a negociação com a oposição em Barbados’

Por Rubens Barbosa*

O Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela proibiu Maria Corina Machado e Henrique Caprilles de ocuparem cargos públicos pelos próximos 15 anos. Com essa decisão, Corina – que havia sido escolhida como candidata única da oposição – fica impedida de concorrer às eleições presidenciais que serão realizadas no segundo semestre do corrente ano. A decisão, que favorece Maduro, foi tomada por um tribunal nomeado e controlado pelo governo de Caracas.

A decisão do Tribunal Supremo de Justiça vai contra o que ficou decidido no Acordo de Barbados, que previa a suspensão das sanções econômicas contra a Venezuela na medida em que fossem tomadas medidas que permitissem que as eleições presidenciais do segundo semestre pudessem transcorrer de forma transparente e com a participação de todos os partidos, sem discriminação em relação aos opositores a Maduro, e monitoradas por organizações internacionais.

Em outubro, no acordo de Barbados, os EUA concordaram em suspender as sanções sobre as exportações de petróleo e gás. Algumas etapas já tinham sido cumpridas, como a libertação de prisioneiros dos dois lados. Com o anúncio da inelegibilidade de Maria Corina, o governo americano, por meio dos departamentos de Estado e do Tesouro, declarou que a medida do Tribunal contradiz o acordo de Barbados e, como consequência, anunciou a retomada das sanções contra a Venezuela e de operações com minérios venezuelanos. 

Na América Latina, a reação também foi imediata. Argentina, Uruguai, Equador, Paraguai, Panamá e Costa Rica criticaram a decisão judicial que excluiu a principal candidata da oposição das próximas eleições. EUA, Canadá, Reino Unido e França, entre outros países, também condenaram a decisão.

Além dessas reações, o grupo IDEA (Iniciativa Democrática da Espanha e das Americas), integrado por 37 ex-presidentes, condenou o veto a Corina.

A decisão da Justiça eleva a tensão no cenário político interno na Venezuela. Na semana passada, 36 pessoas foram presas sob a acusação de planejar a morte de Maduro. Tanto o governo quanto a oposição concordam que o acordo de Barbados ficou superado. Sem Corina na disputa presidencial, o nome cogitado pela oposição é de Manuel Rosales, governador do estado de Zulia, derrotado por Maduro nas eleições presidenciais de 2006.

O governo Lula normalizou a relação com Caracas, nomeou uma embaixadora, e agora fica em posição delicada pois foi, junto com a Noruega, um dos que patrocinaram a negociação com a oposição em Barbados. Sem falar no tratamento privilegiado concedido a Maduro em maio passado, quando da reunião de presidentes sul-americanos, no encontro da Celac e recentemente na mediação do conflito por território com a Guiana.

Até aqui, o governo Lula (assim como o do México e o da Colômbia) manteve seu apoio a Maduro e mantém silêncio sobre a decisão de tornar Corina inelegível, excluindo-a das próximas eleições. O Brasil tem restrições a Corina em função da percepção de que ela faria uma transição difícil, se ganhasse a eleição. O risco da atual política externa é a tendência ideológica prevalecer, e o Brasil evitar condenar o governo Maduro por mais este ato antidemocrático. Chegou o momento de o Brasil rever sua posição e assumir uma nova postura crítica em relação à Venezuela, coerente com a narrativa de Lula de defesa da democracia na política interna.

Rubens Barbosa é diplomata, foi embaixador do Brasil em Londres e em Washington, DC. É presidente do Instituto Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e coordenador editorial da Interesse Nacional. Mestre pela London School of Economics and Political Science, escreve regularmente no Estado de São Paulo e no Interesse Nacional e é autor de livros como Panorama visto de Londres, Integração econômica da América Latina, O dissenso de Washington e Diplomacia ambiental

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sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Os interesses do Brasil e a ideologia - Rubens Barbosa (revista Interesse Nacional)

Rubens Barbosa: Os interesses do Brasil e a ideologia

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Editorial da revista Interesse Nacional, 8/12/2023

Decisões recentes do país colocam em contraste as posições do governo Lula e ações que beneficiariam a política externa do Brasil. Para embaixador, Lula deveria ir à posse de Milei, acordo Mercosul-EU deveria ir adiante,  Brasil deve evitar escalada entre Venezuela e Guiana, e ideia de governança para o clima é problemática.

Por Rubens Barbosa*

  • Novo governo argentino

Na posse do presidente Javier Milei no próximo domingo, o Brasil será representado pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. Estará bem representado, mas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deveria ir a posse, depois do convite de Milei por carta entregue pela nova ministra Diana Mondino, que veio ao Brasil especialmente para isso.

O vice-presidente Geraldo Alckmin representou o Brasil na posse do presidente do Equador, mas não vai à posse do presidente argentino.

O que Milei disse sobre Lula durante a campanha foi resultado da interferência interna na eleição pelo PT, que enviou um grupo de marqueteiros para ajudar Massa contra Milei. Campanha é uma coisa, governo é outra. Lula não deveria passar recibo nem deixar que Bolsonaro apareça em Buenos Aires, sozinho como ex-presidente.

O presidente do Chile, de esquerda, vai comparecer à posse. Ideologia a parte, a relação entre Estados se impõe.

  • Reunião presidencial do Mercosul

A última reunião do Mercosul neste semestre, presidida pelo Brasil, planejada para ser um grande evento, foi concluída bastante esvaziada, no Rio.

Foi assinado o acordo de livre comércio com Cingapura e oficializada a admissão da Bolívia como membro pleno do Mercosul (haverá um período de transitado de três ano para que a legislação do Mercosul seja incorporada ao ordenamento jurídico boliviano, o que poderá durar mais do que esse período).

Foram anunciadas medidas de menor impacto, visando a modernização do subgrupo regional. O grande ausente foi o acordo de livre comercio com a União Europeia, e a grande presença foi a crise Venezuela-Guiana, com Lula oferecendo o Brasil para sediar as conversações entre os dois países e coordenando um comunicado pedindo uma solução negociada.

  • Acordo Mercosul-UE

A decisão do presidente Alberto Fernandes de não querer tomar a decisão de aprovar o acordo do Mercosul com a União Europeia, praticamente pronto para ser finalizado na reunião do Mercosul, adiou mais uma vez o final dessa novela que se arrasta por mais de 20 anos.

A declaração contrária de Macron não teve nada que ver com o postergamento do anúncio. Enquanto o presidente Lula continuou apostando na aprovação final do acordo e pediu e obteve o apoio do premiê da Alemanha, Scholz, o PT no Brasil considerou positivo o fim do acordo.

O assessor presidencial, Celso Amorim, contrariando a posição de Lula, disse que o acordo com a UE tem insuficiências sérias, oferece pouco e exige muito.

O acordo, com o apoio da Comissão Europeia, deverá ser finalmente aprovado logo após a posse de Milei – como indicado pela nova ministra do exterior argentina – em reunião do Mercosul, presidido pelo Paraguai.

O acordo é positivo porque põe fim ao isolamento do Mercosul e representa um avanço geopolítico importante.

Em seguida será concluído o acordo com a Area de Livre Comércio da Europa (EFTA). A abertura comercial para os produtos mais sensíveis do Brasil e do Mercosul somente terão suas tarifas reduzidas a zero daqui a dez anos, a tempo de a reindustrialização ganhar corpo e a redução do custo Brasil permitir o aumento da competitividade dos produtos industriais no mercado europeu.

  • Venezuela – Guiana

O referendo convocado por Maduro sobre a incorporação de 74% do território da Guiana, contestado por Caracas, teve o resultado esperado. Apoio de 94% à reivindicação venezuelana, unindo governo e oposição em torno dessa contestação.

O Brasil vem atuando nos bastidores para evitar uma confrontação militar que poderia trazer os EUA na defesa da Guiana, inclusive com a possibilidade de instalação de uma base militar na região. Por outro lado, mostrando suas limitações na defesa, o Ministério da Defesa anunciou que dobrou o contingente do Exército em Roraima (passou de 60 para 130 militares e enviou cerca de 28 veículos blindados, que levaram semanas para chegar).

Lula disse que o melhor é não ter confusão em nossa região.

Sem ameaçar uma próxima invasão na Guiana, Maduro pediu à Assembleia Nacional a criação do Estado de Essequibo no território contestado, elege interventor e divulga plano de exploração de petróleo, organizado pela PDVSA. Será montado um posto militar avançado em território venezuelano perto da fronteira para supervisionar o novo estado.

A Guiana, em função disso, pediu a convocação de emergência do Conselho de Segurança da ONU para examinar o assunto e está conversando com o governo americano. Os EUA se manifestaram alertando a Venezuela contra um eventual conflito e iniciaram exercícios militares aéreos na Guiana.

  • COP-28, Dubai

O presidente Lula, em inflamado discurso na COP-28, defendeu uma governança global para as questões ambientais. “Precisamos ter uma governança global para cuidar do planeta, porque se você toma uma decisão qualquer em benefício do mundo, e ela tiver que ser votada internamente pelo seu Congresso Nacional, significa que ninguém vai cumprir”.  

Para um país que é uma potência global em questões ambientais e em transição energética onde tem interesses concretos a defender, a criação de uma organização multilateral para regulamentar e acompanhar as questões climáticas e ambientais parece ir na direção contrária à defesa do interesse nacional, pois o Brasil perderia a capacidade de decidir seu rumo no tocante ao desenvolvimento econômico, a bioeconomia e a biodiversidade da Amazônia. No limite, poderia até haver decisões sobre a Amazônia que interfiram com a soberania do país.

A proposta de Lula será difícil de ser examinada seriamente, pois nem os EUA nem a China e nem a Europa aceitariam subordinar suas decisões internas a uma nova organização multilateral para tratar do meio ambiente e mudança do clima.



*Rubens Barbosa foi embaixador do Brasil em Londres e em Washington, DC., é diplomata, presidente do Instituto Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e coordenador editorial da Interesse Nacional.




terça-feira, 28 de novembro de 2023

Venezuela-Guiana: GRAVE CRISE REGIONAL - Rubens Barbosa (O Estado de S. Paulo)

 Venezuela-Guiana


GRAVE CRISE REGIONAL
Rubens Barbosa
O Estado de S. Paulo, 28/11/2023

No próximo domingo, será realizado referendum, convocado pelo governo da Venezuela sobre a incorporação de 74% do território da Guiana. Com previsível resultado favorável para criar a província do Esequibo, a decisão estimulou uma crise externa para mostrar a força do governo, abalada com o apoio maciço da população `a previa de oposição para a escolha do candidato contra Maduro nas eleições presidenciais de 2024. Maduro, que está sob pressão internacional para participar de eleições livres, reiterou seu interesse no diálogo e no respeito do direito histórico do povo venezuelano, enquanto o governo de Georgtown reafirmou que a área contestada pertence a Guiana por herança e séculos de luta e que Caracas quer rejeitar a jurisdição da Corte Internacional de Justiça (CIJ) e antecipar um julgamento futuro, minando a autoridade da CIJ.
Ao contrário das fronteiras entre as possessões espanholas e portuguesas, definidas nos Tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777), os limites entre espanhóis e holandeses no Norte da América do Sul permaneceram indefinidos, situação que herdaram Venezuela e Grã-Bretanha. Durante o século XIX e XX continuou a disputa com gestões junto a Londres e Washington, negociações e juízos arbitrais. Mais recentemente, a partir de 2015, a ONU passou a tratar dessa questão e em 2018 a Guiana pediu para a CIJ declarar a validade do Acordo Arbitral de 1899, cujo laudo favoreceu a Guiana, definindo uma linha que incluiu território brasileiro, objeto de decisão do Rei da Itália, contestado pelo Brasil. Por isso, a Venezuela decidiu rejeitar a competência da CIJ. Em 2020, a CIJ declarou-se competente para tratar da questão. A decisão da Corte ainda pendente, ganha importância pela convocação do referido referendum.
A antiga controvérsia entre a Venezuela e a Guiana é hoje, a maior ameaça a estabilidade regional. A ameaça `a integridade territorial da Guiana introduz um elemento de incerteza nos países anglófonos do Caribe, na Colômbia, em razão da controvérsia entre os dois países para a definição de limites na região do Golfo da Venezuela, e com os EUA, em atrito com Caracas nos últimos 40 anos e com quem Maduro acaba de negociar um acordo para a suspensão das sanções econômicas, com a promessa de transparência das eleições presidências de 2024. A questão pode desestabilizar região sensível para a segurança brasileira em termos de atividades ilegais, como narcotráfico, tráfico de armas e imigração. Para a Guiana é uma questão existencial, pois significaria a perda de cerca de 2/3 de seu território e de área importante de zona marítima adjacente, onde vivem cerca de 300 mil habitantes, do total de um país que tem 800 mil habitantes. É a região mais rica em minérios, inclusive ouro, recursos florestais, agricultura, pesca e potencialmente muito promissora quanto a petróleo e gás. O presidente da Guiana, Irfaan Ali, em encontro como o presidente Lula, em Brasília, no início do mês, solicitou ao Brasil que faça gestões junto a Maduro para impedir a invasão.
É do interesse de todos os países da região, sobretudo do Brasil, que a controvérsia continue a ser discutida no âmbito político e jurídico. O Brasil tem fronteira com os dois países, que historicamente são consideradas legitimamente definidas e demarcadas. O governo Lula normalizou as relações com a Venezuela, com a designação de embaixadora para Caracas, e mantém igualmente relação próxima com a Guiana. Com ambos os países será importante continuar a tratar de temas de interesse comuns, como imigração, repressão a delitos transnacionais, meio ambiente, integração física e energética. Ao Brasil não interessa, por razões históricas e diplomáticas, que se abra uma nova etapa de revisionismo fronteiriço na América do Sul. A segurança jurídica derivada pela aplicação dos tratados e decisões arbitrais é parte da consolidação de um ambiente de paz e entendimento na região, `as voltas com problemas econômicos e social.
No governo Lula, a América do Sul é uma das prioridades da política externa. Por diferentes razões, o Brasil pode e deve exercer uma influência moderadora e construtiva junto aos dois países para que encaminhem soluções que não perturbem a ordem regional. Por meio de sua diplomacia, o Brasil está atuando para uma solução pacífica na disputa pela área de Esequibo. Defendendo uma solução negociada para a controvérsia, o Itamaraty está reiterando o compromisso de todos com a consolidação de uma Zona de Paz e Cooperação entre os Estados americanos. O assunto, neste mês, foi tratado na reunião de Ministros do Exterior e da Defesa da América do Sul, em gestões da Chancelaria junto aos dois governos, e aos demais países da região, em especial a Colômbia, e na visita do Assessor Internacional de Lula a Caracas.
Na prática, dificilmente a Venezuela poderá incorporar pela força parte do território vizinho da Guiana. Os EUA enviaram missão a Georgetown na semana passada. Uma improvável invasão da Guiana teria implicações geopolíticas graves. Os EUA se envolveriam e poderiam instalar uma base militar na Amazônia, em apoio `as empresas americanas que exploram petróleo offshore na Guiana.

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras