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quinta-feira, 11 de abril de 2024

"Ideal é privatizar a Petrobras", diz Marcelo Mesquita, conselheiro mais antigo da Petrobras (Valor)

"Ideal é privatizar a Petrobras", diz Mesquita

Governança - Conselheiro mais longevo afirma que crises sucessivas ocorrem pelo modelo estatal

Kariny Leal, Fábio Couto e Francisco Góes - Do Rio

Valor, 11/04/2024


Mais antigo conselheiro da Petrobras, cargo que ocupa há oito anos, o economista Marcelo Mesquita entende que a privatização é a melhor saída para as contínuas crises vividas pela empresa, governo após governo. "Se um governo do PT faz isso, ficaria no poder 20 anos", diz. Um modelo possível, segundo ele, seria o de "Corporation", empresa sem controle acionário definido, com atuação focada em exploração e produção de petróleo no Brasil. No formato atual de empresa de economia mista, Mesquita identifica vários problemas. Entre os quais aponta as tentativas de ingerência política, incluindo a formação de preços dos combustíveis, e retrocessos na governança, que vai sendo minada gradualmente: "É uma barragem que vai criando rachaduras", compara.

No tempo em que está no colegiado da Petrobras, Mesquita conviveu com sete diferentes presidentes da empresa. Ele deixará o conselho depois da assembleia de acionistas do dia 25, uma vez que não pode se candidatar a uma terceira reeleição, vedada pelo estatuto. O economista não quis opinar sobre tuna possível permanência do atual CEO da estatal, Jean Paul Prates. Mas reconheceu que o debate sobre o comando da estatal paralisa a companhia. Diz ainda nunca ter visto situação como a atual em que conselheiros do governo e diretoria não se entendem, como ocorreu no caso dos dividendos extraordinários: "É como se não fosse bom estar dando lucro e pagando dividendo." A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor: Valor: Que avaliação faz do momento da Petrobras?

Marcelo Mesquita Em crises anteriores, a empresa estava em momento ruim. Em 2018, a Petrobras tinha dívida e custos altos. A lucratividade não era elevada, a empresa não pagava dividendos e a cotação do petróleo estava baixa. A empresa estava fragilizada. Hoje, anos depois, é diferente porque se fez uma reestruturação da governança. A empresa chegou a ter 120 mil funcionários, hoje tem 60 mil e produz mais. Quando se vê que a empresa está indo bem, não tem a "desculpa" para Brasília de que [a Petrobras] não pode atender os pedidos.

Valor: Porque dá lucro?

Mesquita: A empresa é muito lucrativa. Do ponto de vista do país, deveríamos olhar isso [o lucro] com felicidade, e não com o estranhamento que algumas pessoas olham, como se ter muito lucro fosse errado. É como se não fosse bom estar dando lucro e pagando dividendo, essa é a insanidade do atual momento.

Valor: Qual é a razão disso?  

Mesquita: A visão de que a Petrobras é uma galinha de ovos de ouro para o país precisa ser um consenso. O debate deveria ser o seguinte: vai haver uma transição energética, vamos fazer com a Petrobras ou não? É um debate complexo e saudável que o Ministério de Minas e Energia (MME) devia ter com o país. A empresa tem que dar lucro e pagar o máximo de dividendo que puder. Isso não deveria ser debatido. As pessoas acham que está sobrando dinheiro porque a Petrobras não está investindo o suficiente. É uma falácia. Esse é o ponto de partida da conversa do dividendo e do lucro. A Petrobras tem um plano de investimento que é o maior do Brasil, da América Latina e do hemisfério sul. É quase o tamanho da Exxon Mobil, a maior empresa de petróleo americana. Óbvio que a Petrobras gostaria de investir mais, mas precisa ter projeto.

Valor: Se a empresa está tão bem operacionalmente, por que não se construiu um consenso para evitar a crise dos dividendos?

Mesquita: Pois é, eu não entendo. Não sou do governo, não entendo o que acontece entre os políticos em Brasília. O sindicato não querer maior distribuição de dividendos até entendo, porque eles acham que dinheiro na empresa é melhor para ter mais emprego. Mas, de novo, isso é uma falácia porque não gera mais emprego sem as condições [econômicas] para sustentar essas vagas. Se tem dinheiro sobrando e compra ativo na Bolívia, na Venezuela ou na África só para dar destinação ao recurso, não faz sentido. Eu também gostaria que o país fosse autossuficiente em fertilizantes, mas não existe país rico que faça tudo. Se somos bons em fazer poços profundos, vamos focar nisso. Vamos debater como aumentar o investimento em exploração no Brasil.

Valor: Há risco de retrocesso na governança da Petrobras depois dos avanços dos últimos anos?

Mesquita: O risco é a empresa estar muito lucrativa, pagando dividendos e as pessoas quererem fazer coisas que no passado já se viu que não dão retomo. Esse risco é potencializado pela incerteza da transição energética. Mesmo empresas de petróleo privadas, sem as amarras da Petrobras, estão vivendo esse dilema [de diversificar o portfólio].

Valor: Qual é o melhor uso do dinheiro da Petrobras?

Mesquita: O ideal é privatizar a Petrobras, ter uma empresa menor e mais focada em exploração e produção de petróleo no Brasil. E deixar o país usar os recursos [da privatização] para fazer o que precisa, como infraestrutura, escolas, hospitais e abater a dívida pública para ter uma taxa de juros mais baixa. Isso permite ter um custo de capital menor. É saudável para o país usar esse dinheiro que a Petrobras gera. A Noruega e o Chile, por exemplo, têm fundos criados para pegar o excedente de dinheiro em momento de bonança, investir e guardar. No Brasil, não temos maturidade política para guardar porque todo mundo quer gastar quando está no poder e não deixar para quem vem depois. Se pudesse, esse seria o caminho: colocar o dinheiro em um fundo e usar quando precisar. Mas isso é tão sofisticado que não estamos nesse ponto do debate no Brasil.

Valor: O senhor defende a privatização da Petrobras há tempos, mas nunca houve condições reais de avançar nessa discussão...

Mesquita: A sociedade evoluiu. Agora seria o momento de ser magnânimo, de ser estadista. Se um governo do PT faz isso, ficaria no poder 20 anos. Deveriam ter a grandeza de entender isso. Se as forças políticas entendessem que têm que ser pragmáticas e não ideológicas em certas questões, alcançaríamos o consenso para nos desenvolvermos como nação. Cada vez que entra um grupo, fala que vai fazer tudo diferente do anterior. Não se acha uma convergência para que haja avanço.

Valor: Por que nunca ninguém conseguiu privatizar a Petrobras?

Mesquita: Porque ela ficou por último, depois de outros setores como celulose, siderurgia e mineração. A Petrobras, talvez por ser a maior e mais rentável, de um setor que muitos países têm estatais, ficou para o fim. E tem um debate polêmico [em torno ao tema], então vai indo pelas beiradas.

Valor Seu modelo para a privatização seria o de uma "Corporation"?

Mesquita: Privatização pode ser feita em vários modelos, o país tem que debater. Como permitir que a Petrobras se livre das interferências políticas privatizando, mas sem que fique desnacionalizada e aumentando investimentos, pagando impostos e gerando mais lucro. Se faz uma operação eficiente e lucrativa, o país ganha com isso, como ganha com a Vale. Quem é contra privatização por hipocrisia, deveria se obrigar a usar escola e hospital públicos em vez de ir no privado. O governo nem precisaria ter participação acionária, mas poderia influenciar, via "golden share", para não desnacionalizar. O governo recebe impostos da Petrobras, que são brutais. O [valor] que vai para funcionários e acionistas também é brutal.

Valor: Mas para privatizar teria que ter apoio do Congresso, mudar a Lei do Petróleo...

Mesquita: Estamos ficando para trás no mundo. A urgência da privatização da Petrobras tem a ver com a transição energética global. O petróleo vai deixar de ser uma riqueza, então precisamos usá-lo de forma correta.

Valor: Em que prazo?

Mesquita: Ninguém sabe. Mas está determinado que o planeta não quer mais usar petróleo, quer outras fontes de energias renováveis. Não sabemos em que velocidade. Uma empresa privada e ágil vai ter mais condições de tomar riscos do que uma estatal que muda a direção a cada quatro anos com a troca de governo. Qualquer governo de direita ou de esquerda quer mudar o presidente [da Petrobras] a cada ano. Em oito anos, eu vi sete conselhos, sete presidentes, sete diretorias. O Prates entrou, ainda está mudando as pessoas e a estrutura, e já estão falando que ele vai sair.

Valor: A dificuldade de Prates parece ser se equilibrar entre os interesses do governo e do mercado.

Mesquita: Esse embate existe porque tem minoritários que colocaram dinheiro e estão ali brigando. A empresa de economia mista [caso da Petrobras] funciona melhor do que quando não é, mas no Brasil não funciona bem como poderia. Porque não tem esse consenso político de que tem que ter vida de empresa e que não é uma autarquia federal. Com a "class action" [ação movida por investidores contra a Petrobras nos EUA, em 2015] e o acordo com a SEC [a CVM americana], a Petrobras se comprometeu a melhorar a governança e criar regras para evitar ataques e interferências. Graças a isso nos últimos oito anos a empresa melhorou muito. O ataque de Brasília é o mais difícil. Bolsonaro [o ex-presidente Jair Bolsonaro] ligava e achava que podia fazer o que queria. Mas não pode porque as pessoas que estão ali respondem com o CPE É resistência diária, mas a empresa vai sendo minada. É uma barragem que vai criando rachaduras. A flexibilização da Lei das Estatais foi uma delas.

Valor: Faltam duas semanas para a assembleia que vai eleger o conselho. Qual é a sua expectativa?

Mesquita: É um assunto difícil de falar, melhor comentar depois.

Valor: Tem elementos para dizer se Prates fica no cargo?

Mesquita: Nenhum, mas ficar 15 dias aparecendo supostos nomes que vão entrar [como CEO] é péssimo. A empresa para, os diretores começam a procurar emprego porque sabem que vão ficar desempregados. O presidente para de tomar decisão, as empresas que queriam parcerias também param.

Valor: O clima no conselho não parecer ser bom. É isso mesmo?

Mesquita: Onde tem alguma polêmica é quando se define o plano estratégico, ao definir o longo prazo da empresa. Eu votei contra o plano estratégico porque acredito numa Petrobras focada em exploração e produção, vendendo campos maduros, não entrando em coisas que não sabe fazer. Essa gestão, orientada por Brasília, aposta no outro caminho [de diversificar investimentos]. Tem que ter responsabilidade de votar com o CPE Às vezes tem consenso e outras vezes não.
Valor: Um caso em que não houve consenso foi na votação do dividendo extraordinário, quando Prates se absteve na votação.

Mesquita: Nunca vi isso em oito anos. Nos governos Temer e Bolsonaro, mesmo com todas as mudanças, havia coordenação entre CEO e o chairman da empresa, entre conselheiros colocados pelo governo e o que o presidente da empresa estava querendo fazer, sempre houve coordenação forte. Não entendo o que acontece, também não pergunto e não quero saber. É muito estranho a diretoria ter uma proposta e os conselheiros que a indicaram não terem uma atuação coordenada. É surpreendente como minoritário. E não sei explicar, não sei porque é assim. Eu acho que tem que ser distribuído 100% de tudo o que sobra. Por definição, se sobrou dinheiro e a empresa está com dívida resolvida, investindo o máximo que pode, tem que distribuir.

Valor: Então o senhor foi contrário à criação da reserva de capital.

Mesquita: Claro! Porque não tem que ter reserva de procrastinação. Eu até brinco internamente que essa não é uma reserva de capital, é uma reserva de atraso, porque esse dinheiro, um dia, ou vai ter que ser dado ao acionista ou vai ser investido em maluquice. Ou pode queimar [o recurso] caso faça retenção de preço de combustíveis.

Valor: Há algum ativo que a Petrobras não deveria ter vendido?

Mesquita: Foi ótimo [vendera distribuição de combustíveis] porque cria mais concorrência, mais players. Também não houve problema em vender refinarias. Quando se tem uma fatia de mercado monopolista e o dono da empresa é o governo, a mão pesada é sempre para vender barato e fazer politicagem. Historicamente, o capital aplicado em refino nunca deu retorno porque sempre se tentou represar preços para segurar a inflação.

Val

"Ideal é privatizar a Petrobras", diz Mesquita

Governança - Conselheiro mais longevo afirma que crises sucessivas ocorrem pelo modelo estatal

Kariny Leal, Fábio Couto e Francisco Góes - Do Rio

Mais antigo conselheiro da Petrobras, cargo que ocupa há oito anos, o economista Marcelo Mesquita entende que a privatização é a melhor saída para as contínuas crises vividas pela empresa, governo após governo. "Se um governo do PT faz isso, ficaria no poder 20 anos", diz. Um modelo possível, segundo ele, seria o de "Corporation", empresa sem controle acionário definido, com atuação focada em exploração e produção de petróleo no Brasil. No formato atual de empresa de economia mista, Mesquita identifica vários problemas. Entre os quais aponta as tentativas de ingerência política, incluindo a formação de preços dos combustíveis, e retrocessos na governança, que vai sendo minada gradualmente: "É uma barragem que vai criando rachaduras", compara.

No tempo em que está no colegiado da Petrobras, Mesquita conviveu com sete diferentes presidentes da empresa. Ele deixará o conselho depois da assembleia de acionistas do dia 25, uma vez que não pode se candidatar a uma terceira reeleição, vedada pelo estatuto. O economista não quis opinar sobre tuna possível permanência do atual CEO da estatal, Jean Paul Prates. Mas reconheceu que o debate sobre o comando da estatal paralisa a companhia. Diz ainda nunca ter visto situação como a atual em que conselheiros do governo e diretoria não se entendem, como ocorreu no caso dos dividendos extraordinários: "É como se não fosse bom estar dando lucro e pagando dividendo." A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor: Valor: Que avaliação faz do momento da Petrobras?

Marcelo Mesquita Em crises anteriores, a empresa estava em momento ruim. Em 2018, a Petrobras tinha dívida e custos altos. A lucratividade não era elevada, a empresa não pagava dividendos e a cotação do petróleo estava baixa. A empresa estava fragilizada. Hoje, anos depois, é diferente porque se fez uma reestruturação da governança. A empresa chegou a ter 120 mil funcionários, hoje tem 60 mil e produz mais. Quando se vê que a empresa está indo bem, não tem a "desculpa" para Brasília de que [a Petrobras] não pode atender os pedidos.

Valor: Porque dá lucro?

Mesquita: A empresa é muito lucrativa. Do ponto de vista do país, deveríamos olhar isso [o lucro] com felicidade, e não com o estranhamento que algumas pessoas olham, como se ter muito lucro fosse errado. É como se não fosse bom estar dando lucro e pagando dividendo, essa é a insanidade do atual momento.

Valor: Qual é a razão disso?  

Mesquita: A visão de que a Petrobras é uma galinha de ovos de ouro para o país precisa ser um consenso. O debate deveria ser o seguinte: vai haver uma transição energética, vamos fazer com a Petrobras ou não? É um debate complexo e saudável que o Ministério de Minas e Energia (MME) devia ter com o país. A empresa tem que dar lucro e pagar o máximo de dividendo que puder. Isso não deveria ser debatido. As pessoas acham que está sobrando dinheiro porque a Petrobras não está investindo o suficiente. É uma falácia. Esse é o ponto de partida da conversa do dividendo e do lucro. A Petrobras tem um plano de investimento que é o maior do Brasil, da América Latina e do hemisfério sul. É quase o tamanho da Exxon Mobil, a maior empresa de petróleo americana. Óbvio que a Petrobras gostaria de investir mais, mas precisa ter projeto.

Valor: Se a empresa está tão bem operacionalmente, por que não se construiu um consenso para evitar a crise dos dividendos?

Mesquita: Pois é, eu não entendo. Não sou do governo, não entendo o que acontece entre os políticos em Brasília. O sindicato não querer maior distribuição de dividendos até entendo, porque eles acham que dinheiro na empresa é melhor para ter mais emprego. Mas, de novo, isso é uma falácia porque não gera mais emprego sem as condições [econômicas] para sustentar essas vagas. Se tem dinheiro sobrando e compra ativo na Bolívia, na Venezuela ou na África só para dar destinação ao recurso, não faz sentido. Eu também gostaria que o país fosse autossuficiente em fertilizantes, mas não existe país rico que faça tudo. Se somos bons em fazer poços profundos, vamos focar nisso. Vamos debater como aumentar o investimento em exploração no Brasil.

Valor: Há risco de retrocesso na governança da Petrobras depois dos avanços dos últimos anos?

Mesquita: O risco é a empresa estar muito lucrativa, pagando dividendos e as pessoas quererem fazer coisas que no passado já se viu que não dão retomo. Esse risco é potencializado pela incerteza da transição energética. Mesmo empresas de petróleo privadas, sem as amarras da Petrobras, estão vivendo esse dilema [de diversificar o portfólio].

Valor: Qual é o melhor uso do dinheiro da Petrobras?

Mesquita: O ideal é privatizar a Petrobras, ter uma empresa menor e mais focada em exploração e produção de petróleo no Brasil. E deixar o país usar os recursos [da privatização] para fazer o que precisa, como infraestrutura, escolas, hospitais e abater a dívida pública para ter uma taxa de juros mais baixa. Isso permite ter um custo de capital menor. É saudável para o país usar esse dinheiro que a Petrobras gera. A Noruega e o Chile, por exemplo, têm fundos criados para pegar o excedente de dinheiro em momento de bonança, investir e guardar. No Brasil, não temos maturidade política para guardar porque todo mundo quer gastar quando está no poder e não deixar para quem vem depois. Se pudesse, esse seria o caminho: colocar o dinheiro em um fundo e usar quando precisar. Mas isso é tão sofisticado que não estamos nesse ponto do debate no Brasil.

Valor: O senhor defende a privatização da Petrobras há tempos, mas nunca houve condições reais de avançar nessa discussão...

Mesquita: A sociedade evoluiu. Agora seria o momento de ser magnânimo, de ser estadista. Se um governo do PT faz isso, ficaria no poder 20 anos. Deveriam ter a grandeza de entender isso. Se as forças políticas entendessem que têm que ser pragmáticas e não ideológicas em certas questões, alcançaríamos o consenso para nos desenvolvermos como nação. Cada vez que entra um grupo, fala que vai fazer tudo diferente do anterior. Não se acha uma convergência para que haja avanço.

Valor: Por que nunca ninguém conseguiu privatizar a Petrobras?

Mesquita: Porque ela ficou por último, depois de outros setores como celulose, siderurgia e mineração. A Petrobras, talvez por ser a maior e mais rentável, de um setor que muitos países têm estatais, ficou para o fim. E tem um debate polêmico [em torno ao tema], então vai indo pelas beiradas.

Valor Seu modelo para a privatização seria o de uma "Corporation"?

Mesquita: Privatização pode ser feita em vários modelos, o país tem que debater. Como permitir que a Petrobras se livre das interferências políticas privatizando, mas sem que fique desnacionalizada e aumentando investimentos, pagando impostos e gerando mais lucro. Se faz uma operação eficiente e lucrativa, o país ganha com isso, como ganha com a Vale. Quem é contra privatização por hipocrisia, deveria se obrigar a usar escola e hospital públicos em vez de ir no privado. O governo nem precisaria ter participação acionária, mas poderia influenciar, via "golden share", para não desnacionalizar. O governo recebe impostos da Petrobras, que são brutais. O [valor] que vai para funcionários e acionistas também é brutal.

Valor: Mas para privatizar teria que ter apoio do Congresso, mudar a Lei do Petróleo...

Mesquita: Estamos ficando para trás no mundo. A urgência da privatização da Petrobras tem a ver com a transição energética global. O petróleo vai deixar de ser uma riqueza, então precisamos usá-lo de forma correta.

Valor: Em que prazo?

Mesquita: Ninguém sabe. Mas está determinado que o planeta não quer mais usar petróleo, quer outras fontes de energias renováveis. Não sabemos em que velocidade. Uma empresa privada e ágil vai ter mais condições de tomar riscos do que uma estatal que muda a direção a cada quatro anos com a troca de governo. Qualquer governo de direita ou de esquerda quer mudar o presidente [da Petrobras] a cada ano. Em oito anos, eu vi sete conselhos, sete presidentes, sete diretorias. O Prates entrou, ainda está mudando as pessoas e a estrutura, e já estão falando que ele vai sair.

Valor: A dificuldade de Prates parece ser se equilibrar entre os interesses do governo e do mercado.

Mesquita: Esse embate existe porque tem minoritários que colocaram dinheiro e estão ali brigando. A empresa de economia mista [caso da Petrobras] funciona melhor do que quando não é, mas no Brasil não funciona bem como poderia. Porque não tem esse consenso político de que tem que ter vida de empresa e que não é uma autarquia federal. Com a "class action" [ação movida por investidores contra a Petrobras nos EUA, em 2015] e o acordo com a SEC [a CVM americana], a Petrobras se comprometeu a melhorar a governança e criar regras para evitar ataques e interferências. Graças a isso nos últimos oito anos a empresa melhorou muito. O ataque de Brasília é o mais difícil. Bolsonaro [o ex-presidente Jair Bolsonaro] ligava e achava que podia fazer o que queria. Mas não pode porque as pessoas que estão ali respondem com o CPE É resistência diária, mas a empresa vai sendo minada. É uma barragem que vai criando rachaduras. A flexibilização da Lei das Estatais foi uma delas.

Valor: Faltam duas semanas para a assembleia que vai eleger o conselho. Qual é a sua expectativa?

Mesquita: É um assunto difícil de falar, melhor comentar depois.

Valor: Tem elementos para dizer se Prates fica no cargo?

Mesquita: Nenhum, mas ficar 15 dias aparecendo supostos nomes que vão entrar [como CEO] é péssimo. A empresa para, os diretores começam a procurar emprego porque sabem que vão ficar desempregados. O presidente para de tomar decisão, as empresas que queriam parcerias também param.

Valor: O clima no conselho não parecer ser bom. É isso mesmo?

Mesquita: Onde tem alguma polêmica é quando se define o plano estratégico, ao definir o longo prazo da empresa. Eu votei contra o plano estratégico porque acredito numa Petrobras focada em exploração e produção, vendendo campos maduros, não entrando em coisas que não sabe fazer. Essa gestão, orientada por Brasília, aposta no outro caminho [de diversificar investimentos]. Tem que ter responsabilidade de votar com o CPE Às vezes tem consenso e outras vezes não.
Valor: Um caso em que não houve consenso foi na votação do dividendo extraordinário, quando Prates se absteve na votação.

Mesquita: Nunca vi isso em oito anos. Nos governos Temer e Bolsonaro, mesmo com todas as mudanças, havia coordenação entre CEO e o chairman da empresa, entre conselheiros colocados pelo governo e o que o presidente da empresa estava querendo fazer, sempre houve coordenação forte. Não entendo o que acontece, também não pergunto e não quero saber. É muito estranho a diretoria ter uma proposta e os conselheiros que a indicaram não terem uma atuação coordenada. É surpreendente como minoritário. E não sei explicar, não sei porque é assim. Eu acho que tem que ser distribuído 100% de tudo o que sobra. Por definição, se sobrou dinheiro e a empresa está com dívida resolvida, investindo o máximo que pode, tem que distribuir.

Valor: Então o senhor foi contrário à criação da reserva de capital.

Mesquita: Claro! Porque não tem que ter reserva de procrastinação. Eu até brinco internamente que essa não é uma reserva de capital, é uma reserva de atraso, porque esse dinheiro, um dia, ou vai ter que ser dado ao acionista ou vai ser investido em maluquice. Ou pode queimar [o recurso] caso faça retenção de preço de combustíveis.

Valor: Há algum ativo que a Petrobras não deveria ter vendido?

Mesquita: Foi ótimo [vendera distribuição de combustíveis] porque cria mais concorrência, mais players. Também não houve problema em vender refinarias. Quando se tem uma fatia de mercado monopolista e o dono da empresa é o governo, a mão pesada é sempre para vender barato e fazer politicagem. Historicamente, o capital aplicado em refino nunca deu retorno porque sempre se tentou represar preços para segurar a inflação.

Valor: Faz sentido econômico ter lançado o segundo trem da Rnest [Refinaria Abreu e Lima]?

Mesquita: Faz porque o investimento foi feito. O ganho é grande ao se terminar o que começou. Votei a favor. Apesar de ter sido um investimento mal-feito, com preços absurdos, que demorou à beça [para ser implantado], a pior obra é a inacabada. Não é uma questão ideológica, é prática, específica.

Valor: Há defasagem nos preços dos combustíveis desde o início do ano. Como é o debate no conselho?

Mesquita: Não se pode olhar a defasagem apenas a curto prazo. Todo mês o conselho monitora a política de preços, a equipe de vendas explica o que está acontecendo com dados e gráficos. Na gestão de Prates, a política foi correta, não se vendeu gasolina com subsídios. Quando precisou, [a Petrobras] aumentou [os preços]. Agora é difícil [aumentar preços], porque quando se fala em derrubar o presidente e é preciso reajustar, é difícil acreditar que ele vá fazer. Entram as pressões políticas. Eu já vi esse filme antes. Por isso tem que privatizar.

Valor E se Prates reajustasse os preços dos combustíveis hoje?

Mesquita: Seria corajoso ao extremo. Eu, se fosse ele, até tentaria, para mostrar que é forte e que não vai sair. Se o Lula não quer tirá-lo [da presidência da Petrobras] de fato, é um ótimo momento para aumentar os combustíveis, mostrar que está tudo normal.


or: Faz sentido econômico ter lançado o segundo trem da Rnest [Refinaria Abreu e Lima]?

Mesquita: Faz porque o investimento foi feito. O ganho é grande ao se terminar o que começou. Votei a favor. Apesar de ter sido um investimento mal-feito, com preços absurdos, que demorou à beça [para ser implantado], a pior obra é a inacabada. Não é uma questão ideológica, é prática, específica.

Valor: Há defasagem nos preços dos combustíveis desde o início do ano. Como é o debate no conselho?

Mesquita: Não se pode olhar a defasagem apenas a curto prazo. Todo mês o conselho monitora a política de preços, a equipe de vendas explica o que está acontecendo com dados e gráficos. Na gestão de Prates, a política foi correta, não se vendeu gasolina com subsídios. Quando precisou, [a Petrobras] aumentou [os preços]. Agora é difícil [aumentar preços], porque quando se fala em derrubar o presidente e é preciso reajustar, é difícil acreditar que ele vá fazer. Entram as pressões políticas. Eu já vi esse filme antes. Por isso tem que privatizar.

Valor E se Prates reajustasse os preços dos combustíveis hoje?

Mesquita: Seria corajoso ao extremo. Eu, se fosse ele, até tentaria, para mostrar que é forte e que não vai sair. Se o Lula não quer tirá-lo [da presidência da Petrobras] de fato, é um ótimo momento para aumentar os combustíveis, mostrar que está tudo normal.


segunda-feira, 1 de abril de 2024

Ainda sobre o golpe de 1964 e a memória da ditadura e seus crimes - Luiz Carlos Azedo entrevista Caetano Araújo

 

Existe um fio de história que liga os acontecimentos de 1964 aos dias atuais, que passa pelas reformas de base na marra, a luta armada, o voto nulo, o não apoio a Tancredo Neves, a rejeição ao Plano Real e o fracasso do governo Dilma Rousseff: o voluntarismo e a frustração de esquerda porque a queda da ditadura não se confundiu com a revolução.”

 

domingo, 31 de março de 2024

Luiz Carlos Azedo - Por quem os sinos dobram neste 31 de março 

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Correio Braziliense

Há um pacto de silêncio entre Lula e os comandantes militares, que proibiram as comemorações nos quartéis do golpe de 1964, enquanto golpistas prestam contas à Justiça

É preciso fugir ao senso comum e ao passado imaginário para ter um novo olhar sobre o dia 31 de março de 1964. O regime militar que ali se instalou somente se encerrou com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, e a bem-sucedida transição à democracia presidida por José Sarney, cujo coroamento foi a promulgação da Constituição de 1988. Desde então, temos uma democracia representativa de massas, de caráter social-liberal. Não é pouca coisa a preservar.

Um velho amigo, o sociólogo Caetano Araújo, consultor do Senado, a propósito da polêmica sobre se o governo Lula deveria comemorar ou não o golpe de 1964, fez uma sensata separação entre a verdade e a Justiça, que não são mesma coisa, embora devam caminhar juntas. É verdade que os órgãos de segurança cometeram crimes hediondos, sobretudo no caso dos desaparecidos, mas a aprovacão da anistia em 1979, que não foi exatamente como os militares queriam, foi o grande pacto entre o governo e a oposição que deu início efetivo à ultrapassagem pacífica do regime autoritário.

Era a justiça possível, como correu em outras transições complexas da época. O Chile até hoje convive com uma constitucionalidade herdada do governo de Augusto Pinochet. O Uruguai promoveu um plebiscito que anistiou os militares. A Argentina puniu seus ditadores, depois do desastre das Malvinas, mas também motoneros e militantes do ERP envolvidos em crimes de sangue. Na África do Sul, sob liderança de Nelson Mandela, a Comissão da Verdade promoveu uma reflexão para que o passado do apartheid não se repetisse, não teve papel criminal.

Seguiram o rastro da Espanha, profundamente dividida desde a década de 1930. Após a morte de Franco, em meio à crise econômica e social, sem a mínima estrutura democrática, com apoio do rei Juan Carlos I, Adolfo Suarez abriu o diálogo entre esquerda, centro e direita. No Palácio la Moncloa, em 1977, em Madri, todos os partidos assinaram um pacto no qual predominava a preocupação econômica, mas que abarcava previdência, trabalho, liberdade, direito, energia, defesa e educação. A Espanha tornou-se uma democracia sólida, que sobreviveu à tentativa de golpe militar de 1981.

“Por quem os sinos dobram” (Bertrand Brasil), de Ernest Hemingway, que lutou como voluntário nas Brigadas Internacionais, é uma grande história de amor, tendo por referência a experiência pessoal do escritor na Guerra Civil Espanhola. Entretanto, narra a extrema violência das tropas de ambos os lados: os nacionalistas, auxiliados pelo governo italiano e nazista alemão, e os republicanos, apoiados pelas brigadas e a União Soviética. O livro é inspirado no poema “Meditações”, do pastor e poeta John Donne: “Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”. Empresta o título à coluna.

Mortos e desaparecidos
Sim, os sinos hoje dobram por 434 mortos e desaparecidos, vítimas do regime militar, a maioria dos quais na tortura ou executados em confrontos simulados com os órgãos de repressão. Mas também dobram por cerca de 119 mortos pelos grupos armados que se opuseram à ditadura. E quatro militantes de esquerda que foram executados pelos próprios companheiros. Não eram “cachorros”. Qualquer tentativa de ajuste de contas punitivo com esse passado é um equívoco. Isso não significa confinar essa memória ao culto doméstico dos familiares de mortos e desaparecidos.

A radicalização política que antecedeu o golpe de 1964 dividiu profundamente a sociedade, inclusive as classes sociais e as famílias. Nem tudo foi fruto da “guerra fria”. Havia, como há ainda, um ambiente de iniquidade social propício. E também uma visão de ambos os lados de que as coisas se resolveriam pela força bruta do Estado e não pela sociedade, por via democrática.

A esquerda deveria se perguntar: por que Juscelino Kubitscheck e Ulyssses Guimarães apoiaram o golpe? A resposta é simples: foram empurrados para os braços de Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, que empunharam a bandeira da democracia contra o radicalismo de esquerda. Os militares deveriam também se perguntar: por que Juscelino e Ulysses passaram à oposição, logo após o golpe de 1964? Outra resposta simples: o regime cancelou as eleições e derivou para uma ditadura sanguinária.

Existe um fio de história que liga os acontecimentos de 1964 aos dias atuais, que passa pelas reformas de base na marra, a luta armada, o voto nulo, o não apoio a Tancredo Neves, a rejeição ao Plano Real e o fracasso do governo Dilma Rousseff: o voluntarismo e a frustração de esquerda porque a queda da ditadura não se confundiu com a revolução.

Outro fio de história liga a frustração dos militares que ingressaram na carreira quando era uma via de ascensão ao poder político, cuja recidiva se deu no governo Bolsonaro, à tentativa de golpe de 8 de janeiro da extrema direita bolsonarista, inspirada no passado imaginário do regime militar: a mentalidade de que às Forças Armadas cabe tutelar a nação, por representar “o povo em armas”.

A polêmica sobre a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de não relembrar oficialmente o golpe militar de 31 de março de 1964 é fruto dessas vicissitudes históricas. De fato, há um pacto de silêncio entre Lula e os comandantes militares, que proibiram as comemorações nos quartéis, enquanto generais e outros oficiais golpistas prestam contas à Justiça comum, fato inédito na história.

Entretanto, a sociedade não está proibida de reverenciar seus mortos, como fizeram os professores da Faculdade de Direito de Niterói (UFF), ao propor o título de Doutor Honoris Causa ao seu ex-aluno Fernando Santa Cruz, sequestrado e assassinato em 1974, depois de diplomá-lo bacharel post mortem. 

O governo Lula tem de fazer mais para despolitizar as Forças Armadas brasileiras, porque aqueles que estiveram envolvidos nos planos golpistas permanecem quase todos impunes” - Entrevista Oliver Stuenkel (Visão)

 O governo Lula tem de fazer mais para despolitizar as Forças Armadas brasileiras, porque aqueles que estiveram envolvidos nos planos golpistas permanecem quase todos impunes”

Entrevista Oliver Stuenkel

Revista Visão, 30/03/2024

https://visao.pt/ideias/2024-03-31-o-governo-lula-tem-de-fazer-mais-para-despolitizar-as-forcas-armadas-brasileiras-porque-aqueles-que-estiveram-envolvidos-nos-planos-golpistas-permanecem-quase-todos-impunes/

É um académico que sabe e adora comunicar. Nas redes sociais e em órgãos de comunicação social de referência (The New York Times, Foreign Policy, Americas Quarterly, El País, ZDF, Globo) é capaz de comentar – em português, inglês ou alemão – o que se passa no mundo e também no país onde escolheu viver, o Brasil. Professor e investigador na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, Oliver Stuenkel, nascido há 42 anos em Dusseldorf, especializou-se nos desafios colocados pelos países do chamado Sul Global ao Ocidente.

Escreveu há poucas semanas [na Foreign Policy] que uma das ações menos conhecidas da administração de Joe Biden tem a ver com a forma como se envolveu na disputa eleitoral entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Os EUA salvaram a democracia brasileira?
Em primeiro lugar, é importante lembrar o papel que alguns outros atores tiveram nesse processo. Em particular, a mobilização da sociedade civil. Essa dinâmica interna tem de ser destacada. Porém, através de uma série de conversas e entrevistas com especialistas em assuntos militares, com políticos e diplomatas brasileiros, começámos a perceber que a pressão dos Estados Unidos ao longo do ano 2022 parece ter sido crucial para dividir e alertar alguns elementos golpistas nas Forças Armadas brasileiras. Os EUA fizeram saber que não aceitavam uma rutura democrática no Brasil. Criou-se um ambiente muito hostil a esse tipo de ação, ao contrário do que se verificou em 1964 [Washington apoiou a conspiração e o golpe contra o então Presidente João Goulart, instaurando um regime militar que vigorou até 1985].

Como se exerceu a pressão americana?
Boa parte ocorreu nos bastidores. Sabemos das viagens dos dirigentes dos EUA. É muito raro que, num período eleitoral, o chefe da CIA, o secretário da Defesa, o conselheiro de Segurança Nacional, entre outros, visitem o mesmo país. Sabemos hoje que, para o setor antidemocrático das Forças Armadas brasileiras, a falta de apoio dos EUA foi um fator-chave. O ex-vice-presidente do Brasil, depois da derrota eleitoral, explicou aos seus seguidores que não havia mais nada a fazer. Ele sabia que uma parte da população desejava que as Forças Armadas dessem um golpe de Estado.

Está a referir-se ao general Hamilton Mourão?
Sim. Ele veio dizer [aos bolsonaristas] que entendia a insatisfação, mas que o ambiente internacional não o permitia. Outra explicação importante. Os EUA não pressionaram para que existisse uma vitória do Lula, pressionaram para que os generais reconhecessem o resultado eleitoral.

Para que houvesse respeito pela vontade popular?
Exato, e isso é muito significativo.

Porquê?
Por norma, vemos o envolvimento dos EUA com muito ceticismo, a perceção é de que só ocasionalmente defendem a democracia. Por terem vários regimes autoritários como aliados. Parece-me que Washington não queria uma rutura democrática no Brasil, talvez por recear um maior ostracismo brasileiro no Ocidente e isso facilitar a atuação chinesa no maior país da América do Sul. A China não se preocupa se os seus parceiros têm governos democráticos ou respeitam os direitos humanos. Com frequência, consolida a sua influência em Estados em situação de isolamento. Vejamos o que aconteceu com a Venezuela, com a Rússia e com uma série de países africanos que estão sob sanções ocidentais…

Interesses estratégicos…
Por um lado, evitar essa abertura estratégica à China; por outro, o fator Trump. Jair Bolsonaro posicionou-se como um dos principais fãs do ex-Presidente americano e questionou a legitimidade das eleições, em 2020. Para a administração Biden era muito importante evitar uma escalada autoritária na maior democracia do subcontinente.

Podemos dizer que a estrutura do Estado brasileiro já está desbolsonarizada? Os generais golpistas foram afastados?
Houve avanços, mas é um processo longo. Há que dizer que o Brasil, desde a sua independência, vive numa tensão permanente entre civis e militares. Vimos como logo no início do século XX – com o tenentismo – se criou a ideia de que os militares são mais patriotas, mais comprometidos com a nação, mais competentes, menos corruptos e que podem envolver-se em aventuras democráticas. Em momentos de crise, quando os civis se comportam de forma irresponsável, permanece essa ideia de que os militares precisam de atuar. É uma visão profundamente paternalista, como se os civis fossem crianças e os militares os adultos que precisam de intervir e supervisionar o que acontece. Isto é algo que um só governo não consegue eliminar.

Como assim?
É preciso demitir generais, afastar quem não denuncia situações graves. Como dizemos no Brasil, “o buraco é mais em baixo”. É uma questão que tem a ver com a educação e a formação dos militares, é preciso mudar os currículos nas academias. As nossas Forças Armadas nunca reconheceram de forma explícita as violações cometidas durante a ditadura [1964-1985] e isso deve-se ao processo de transição para a democracia, que foi excessivamente harmonioso.

Lula gostaria de ser um ator internacional como Modi, que tem um papel-chave na contenção da China. Só que a Índia é uma potência nuclear e tem o espaço de manobra estratégica que falta ao Brasil

Harmonioso?
Não teve nada a ver com o que aconteceu na Argentina, nos anos 80, em que houve um colapso moral das Forças Armadas e uma grave crise económica devido à guerra com o Reino Unido, como retrata o filme Argentina 1985[realizado por Santiago Mitre e protagonizado por Ricardo Darín]. No Brasil foi diferente. Foram os generais que conduziram a transição e ditaram que não haveria aquilo que eles designavam como “caça às bruxas”. Essas exigências foram cumpridas e, 35 anos depois, surge um indivíduo [Bolsonaro] com uma narrativa enviesada e romantizada da ditadura militar.

Que pode então ser feito?
O governo Lula tem de fazer mais para despolitizar as Forças Armadas, porque aqueles que estiveram envolvidos na elaboração de planos golpistas, aqueles que planearam a violência de 8 de janeiro de 2022, permanecem quase todos impunes.

Há processos a decorrer…
São processos simbólicos. Uma coisa é condenar cidadãos que estiveram em Brasília a destruir propriedade pública, outra coisa são os generais. Por enquanto, tudo indica que esses oficiais de alto escalão sairão ilesos. Temos o direito de questionar se algum general, se algum coronel, será expulso, será preso… No Brasil, o controlo civil sobre as Forças Armadas é muito mais recente do que parece. Só se criou um Ministério da Defesa em 1999. Antes, as chefias militares tinham assento no gabinete presidencial e faziam automaticamente parte do governo. O primeiro responsável pela pasta da Defesa com competência direta para decidir, por exemplo, orçamentos militares, foi Nelson Jobim [2007-2011]. Os outros cinco ministros civis que o antecederam não tinham poder nenhum.

Com Lula, a diplomacia brasileira voltou a ser “ativa e altiva”?
Esse conceito concebido por Celso Amorim [ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e atual conselheiro do Presidente] voltou a ser recuperado logo a seguir às eleições de 2022. Ainda antes de tomar posse, em novembro desse ano, Lula foi ao Egito, à Cimeira do Clima, anunciar: “O Brasil está de volta.” De certa forma, é verdade, devido ao isolamento internacional causado por Jair Bolsonaro. O país deixou para trás a abordagem trumpista e de abandono do multilateralismo. Está novamente envolvido no combate às mudanças climáticas, regressou ao G-20, recebeu convite para participar no G-7…

Não é estranho que o Brasil tenha três grandes atores na sua política externa – Lula, Celso Amorim e Mauro Vieira [ministro dos Negócios Estrangeiros]? Que nem sempre parecem estar em sintonia…
Do ponto de vista geopolítico, está de volta, está mais ambicioso do que no tempo de Bolsonaro. Neste momento, tem uma abordagem que alguns chamam de não alinhamento, outros de multialinhamento, de neutralidade estratégica, de equidistância face às principais potências. É um caminho cada vez mais difícil num ambiente de grande turbulência geopolítica, com as relações entre os EUA e a China, ou entre a Rússia e o Ocidente, a piorarem. Claro que o Brasil quer manter e fortalecer os laços com o Ocidente, mas é o maior comprador mundial de diesel russo e também um dos maiores importadores de fertilizantes da Rússia. Lula já disse explicitamente que quer que Vladimir Putin esteja na cimeira dos G-20, no Rio de Janeiro, em novembro.

Um anúncio surpreendente…
O Brasil assinou o Estatuto de Roma [acordo que permitiu criar o Tribunal Penal Internacional e que entrou em vigor em 2002] e, portanto, em princípio, terá de prender o Presidente russo se este entrar em solo brasileiro. Isto parece o novo normal do Brasil. Em alguns momentos, parece estar do lado do Ocidente; em outros, não. Creio que existe uma intenção de aparente neutralidade, mas depois há a parte retórica. Lula gosta de falar de improviso, os assessores dele ficam em desespero. As palavras importam, pesam e muitas vezes atrapalham. Já tivemos afirmações dele muito controversas, das quais discordo em absoluto – sobre Zelensky e a Ucrânia, sobre Maduro e a Venezuela, sobre Israel e o Holocausto.

Lula está a comprometer a capacidade do Brasil de mediar alguns conflitos? Ou está a tentar ser o líder do Sul Global?
Ele gostaria de envolver mais o Brasil nas grandes questões. Sem dúvida que as nações do Sul Global têm de se sentar à mesa na hora de debater a reforma das instituições internacionais. O diretor do FMI tem de continuar a ser sempre um europeu? O presidente do Banco Mundial tem de ser americano? Os EUA e o Ocidente ainda ditam demasiadas condições. Porém, o que pode o Brasil fazer pelo futuro da Ucrânia? Conversei recentemente com dirigentes ucranianos e, na perspetiva deles, os governantes brasileiros demonstram ignorância sobre o conflito.

Um comentário que, presumo, lhe tenha sido feito na Conferência de Segurança de Munique [16-18 fevereiro].
Já antes ouvira algo assim. Em Munique não houve sequer uma participação brasileira de alto nível, com ministros e o Presidente [Lula estava na Etiópia, na Cimeira da União Africana]. A perceção na Ucrânia e no Ocidente é de que o Brasil tem simpatia pela Rússia.

Como é que Lula pode contrariar essa perceção?
Um dos países que inspiram o Brasil é a Índia. Narendra Modi [primeiro-ministro da Índia] também se posiciona de forma ambígua, compra armas e energia russas, mas é visto como um aliado do Ocidente. Creio que Lula gostaria de ser um ator internacional como Modi, que tem um papel-chave na contenção da China. Só que a Índia é uma potência nuclear e tem o espaço de manobra estratégica que falta ao Brasil.

Daí os entendimentos nos BRICS?
Os BRICS tornaram-se um instrumento-chave da política externa brasileira. Até Bolsonaro, que se apresentou como o candidato pró-EUA e anti-China, acabou por abraçar os BRICS – estava tão isolado no Ocidente, que se virou para os BRICS como uma espécie de seguro de vida diplomático. Mas a única coisa que une esse grupo é o incómodo com a liderança internacional dos EUA. Só que o Brasil possui uma visão reformista, não revolucionária, das organizações internacionais existentes. Por isso se opôs ao alargamento dos BRICS. Lula não quer pertencer a um clube antiocidental. Na próxima cimeira, em outubro, na Rússia, Putin pode ter a seu lado os presidentes do Irão, da Síria, da Bielorrússia…

O que pensa do fracasso das negociações entre a UE e o Mercosul?
Uma oportunidade perdida para todos. Parte das preocupações ambientalistas europeias em relação ao acordo é um protecionismo velado, porque não o assinar não vai preservar um centímetro de floresta no Brasil. Pelo contrário. O Brasil teria de adotar padrões ambientais muito mais exigentes. A alternativa é que o Brasil amplie agora o seu comércio com a China, que se importa muito menos com as questões ambientais.


terça-feira, 19 de março de 2024

Intervenção na economia afasta investimentos e reduz potencial do PIB - Solange Srour, do UBS, entrevista a Eduardo Laguna e Renata Pedini (Broadcast)

  Os companheiros não gostam de críticas à sua política econômica. Assim ocorreu entre 2011 e 2014, com o PT defendendo as escolhas de Dona Dilma, até que o inevitável se impôs...

Intervenção na economia afasta investimentos e reduz potencial do PIB, diz Solange Srour, do UBS

Para economista, episódio dos dividendos da Petrobras aumenta o grau de incerteza em relação a possíveis interferências não só na área de petróleo, mas em outras áreas da economia

Por Eduardo Laguna (Broadcast) e Renata Pedini (Broadcast)


ESTADAO, 18mar24

 

A diretora de macroeconomia para o Brasil do UBS Global Wealth Management, Solange Srour, avalia que, qualquer que seja o desfecho, a crise aberta pela retenção de dividendos extraordinários da Petrobras elevou no horizonte dos investidores o risco de interferência do governo não apenas na estatal, mas em outras áreas da economia.

Mesmo que a Petrobras distribua os dividendos que foram retidos, a possibilidade de o governo intervir, além das empresas onde tem participação, em marcos regulatórios continuará sendo uma incerteza que, junto com outras indefinições, atrapalha os investimentos. A consequência é uma limitação no potencial de crescimento do País.

“O episódio aumenta o grau de incerteza em relação a possíveis intervenções, não só na área de petróleo, mas em outras áreas da economia, e isso atrapalha o investimento, em última instância”, diz Solange Srour em entrevista ao Estadão/Broadcast. Na conversa, a diretora de macroeconomia do braço de gestão de fortunas do UBS Global fala ainda da probabilidade “não pequena” de mudança já no ano que vem do arcabouço fiscal. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Em relação à confiança do investidor, a interferência do governo na Petrobras causa um grande abalo?

O episódio aumenta o grau de incerteza em relação a possíveis intervenções, não só na área de petróleo, mas em outras áreas da economia, atrapalhando o investimento, em última instância. A incerteza sobre intervenções tem preço para o cenário macro, porque aumenta também a incerteza regulatória, aumenta a incerteza sobre qualquer tipo de investimento, seja em empresa pública ou em empresa privada. Aumenta o prêmio de risco no juro neutro da economia, porque você tem menos investimento, logo, menos PIB potencial. Então, é bem negativo aumentar esse nível de incerteza. Mesmo que voltemos à estaca zero, e a Petrobras pague o dividendo, que o Prates (Jean Paul Prates, presidente da Petrobras) continue, a dúvida existe e vai ficar perene na economia.

No ano passado, o investimento, em queda, já foi na contramão do consumo, que cresce. Quais preocupações isso traz do ponto de vista da inflação e do PIB potencial?

Em 2024, o investimento deve voltar a subir, mas o problema é que estruturalmente não vai acontecer um salto de investimento porque, mesmo que o Banco Central (BC) corte os juros, é difícil ver um ciclo de investimento bombando no Brasil quando a taxa de juros de equilíbrio é vista como alta, dadas as incertezas fiscais. E, para piorar a situação, tem toda a questão não só do risco de intervenção (do governo) em empresas, mas também do ambiente regulatório muito incerto. Volta e meia tenta-se mudar algum marco no Congresso. A reforma tributária é muito positiva, mas no curto prazo traz uma incerteza enorme. Enquanto ela não for regulamentada, nenhum setor sabe qual será a sua alíquota. Não sabemos nem qual vai ser a alíquota geral. Como é que você vai investir se você não sabe nem qual é o seu regime tributário? Então, é muita insegurança para o investimento.

Os investimentos públicos não podem puxar a retomada dos investimentos?

Não tem espaço fiscal. O investimento público fica restrito ao teto. Várias despesas obrigatórias consomem o investimento. Tem de pagar o funcionalismo, a Previdência, os benefícios sociais, a saúde, a educação... O que sobra para investimento? Nada.

Mas o governo não deve tentar blindar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) de possíveis contingenciamentos no orçamento?

No fim, acaba pegando uma parte pequena do PAC. Não tem onde cortar porque o resto (das despesas no orçamento) é quase tudo obrigatório. Fora isso, vale lembrar que, mesmo no PAC, em grande parte, o governo conta com o privado. Grande parte do PAC é investimento privado.

Qual contribuição os dividendos retidos pela Petrobras podem dar ao resultado fiscal do governo se liberados neste ano?

Para o fiscal, isso importa muito. Não está no Orçamento, mas é claro que o ministro da Fazenda (Fernando Haddad) considera importante o pagamento de dividendos, porque estamos num momento muito crucial em que falta arrecadação para chegar à meta de déficit zero. A arrecadação forte de janeiro e fevereiro não salva o ano. Qualquer arrecadação é importante - e esta do dividendo da Petrobras é grande. Então, se forem pagar mais à frente, ajuda, sim, nas projeções dos números de (resultado) primário (receitas menos despesas, sem levar em conta o pagamento dos juros da dívida).

A arrecadação forte no primeiro bimestre empurra a revisão da meta do primário mais para frente?

Teremos mudança da meta. Não em março, já que o próprio Ceron (Rogério Ceron, secretário do Tesouro) tem dito que as projeções dessa revisão vão ficar perto do limite da banda (definida pelo novo arcabouço fiscal), ou seja, um déficit de 0,25% do PIB. Pode haver um contingenciamento pequeno para chegar nessa projeção. A mudança inevitavelmente vai ter de acontecer em algum momento, talvez na preparação da Lei de Diretrizes Orçamentárias do ano que vem. O governo não quer que sejam acionados em 2025 e 2026 os gatilhos previstos caso a meta não seja cumprida. Na prática, não precisaria mudar. Só tomar ações para chegar mais perto, contingenciar mais.

Acionar os gatilhos, com suas penalidades, ao invés de mudar a meta, não seria melhor aos olhos do investidor?

A reação do mercado na mudança da meta vai depender muito da forma como ela for feita. Se mudar a meta sem contingenciar muito, vai dar uma sinalização de que a meta pode ser mudada sempre e de que não há preocupação com a despesa. Quer dizer, o crescimento do PIB é muito mais importante do que fazer um corte de gastos e tentar chegar perto da meta. Mudar a meta com um contingenciamento forte é diferente de mudar a meta sem esforço. Agora, tudo vai depender do timing. Todo o contexto importa. Se acontecer junto com a queda de juros dos Estados Unidos, e a depender da mensagem do Federal Reserve, pode ser que acabe absorvendo (uma piora da percepção fiscal) mesmo se não houver esforço.

A perda de popularidade do presidente Lula não reduz a chance de um corte de gastos razoável?

Parece que não vai acontecer nenhum tipo de corte de gasto relevante, pelo contrário. Talvez não tenha novo gasto porque existe um teto, mas pode ter desoneração. Essa queda de popularidade veio de uma forma inesperada para nós, porque a economia está muito bem. O dado da Pesquisa Mensal de Comércio veio muito acima do teto das expectativas, o que aumenta as projeções para o PIB do primeiro trimestre. O desemprego está baixo, a inflação tem vindo muito positiva. O repique de preços de alimentos não pode explicar uma perda de popularidade porque é bem transitório.

A evolução dos gastos também preocupa quando se olha para o limite do arcabouço, que permite um aumento, acima da inflação, de no máximo 2,5% das despesas? Esse teto pode estourar no ano que vem?

Tem uma probabilidade porque a nova regra do salário mínimo impacta muito a Previdência. Ano que vem o salário mínimo já vai crescer, em termos reais, cerca de 3%, porque é o PIB de dois anos antes (2023, quando o PIB cresceu 2,9%). No ano de 2026, é o PIB de 2024, que também não parece ruim. Se o PIB crescer 2% ao ano, vamos ter de fazer uma nova reforma da Previdência, porque toda reforma vai ser consumida com o aumento do gasto da Previdência derivado da regra do salário mínimo, que foi aprovada sem discutir os impactos no fiscal. Outra coisa, o número dos beneficiários de todos os programas sociais está explodindo. Também vai impactar, se continuar nesse ritmo. É por isso que grande parte do mercado vê como subestimada a estimativa (do governo) de déficit do INSS deste ano.

O arcabouço corre risco no ano que vem?

Em 2025, o arcabouço está em risco, porque despesas em educação e saúde vão crescer 100% com a receita, o salário mínimo vai impactar muito a Previdência. Vai ser difícil caber tudo dentro do teto. Para caber, vai ter de fazer um corte significativo das discricionárias, que nem sei se vai ser factível, mesmo que o governo queira. Talvez tenha de ter um ajuste nesse limite, talvez algumas despesas fiquem fora do limite.

Isso prejudicaria a credibilidade do arcabouço?

No fim do governo Bolsonaro, foram feitas quatro mudanças constitucionais para aumentar o teto. Algumas delas foram um pouco traumáticas, mas depois o mercado aceitou. Se esse aceite vai se repetir em 2025, vai depender do cenário internacional, do nível do juro de dez anos nos EUA, se a China vai crescer 5% ou 3%. Isso sem falar na meta de primário. A probabilidade não é pequena de ter de alterar o arcabouço.

Qual é a sua expectativa para o comunicado que será divulgado na quarta-feira pelo Copom?

O Banco Central já comunicou que vai tirar o forward guidance (ferramenta usada pelos BCs para delinear o curso futuro da política monetária) em algum momento, não necessariamente nesta reunião. E o mercado absorveu bem que vai tirar. O BC quer ter menos amarras num momento de incertezas nos cenários internacional e doméstico. O mercado já absorveu, mas é claro que se tirar agora vai diminuir um pouco a chance de haver mais duas reduções de 0,50 ponto porcentual da Selic. O cenário mais provável é de o Banco Central avisar que vai tirar para não provocar nenhum tipo de estresse.

De qualquer forma, o cenário é favorável à continuidade da redução dos juros, certo?

Sim, porque a taxa de juros está muito restritiva e o cenário de inflação é positivo para este ano. As expectativas de inflação do Focus devem cair mais, há espaço para os juros continuarem a cair, mas o BC não quer passar a mensagem de que vai para um nível estimulativo. Quando retirar o forward guidance, vai querer passar a mensagem de que a taxa ainda precisa continuar restritiva. Um dos principais motivos é que a atividade está se comportando melhor do que o esperado. Na inflação de serviços, os relacionados ao mercado de trabalho estão fortes. Não é aconselhável ir para uma taxa estimulativa.


segunda-feira, 11 de março de 2024

Presença militar no Governo Federal: de que se alimenta, o que se pode esperar - Entrevista com Gunter Axt (2020)

 

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Gunter Axt: Presença militar no Governo Federal: de que se alimenta, o que se pode esperar - Entrevista

 Uma excelente entrevista por um historiador conhecido.


Gunter Axt: Presença militar no Governo Federal: de que se alimenta, o que se pode esperar
Parêntese (Porto Alegre, RS), 4/06/2020
Por Luís Augusto Fischer



Gunter Axt é doutor em História Social pela USP (2001), fez estágio pós-doutoral junto ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (2006) e junto ao PPG em Direito da UFSC (2014-2016). Foi professor visitante na Université Denis Diderot, Paris VII, junto ao Institut de la Pensée Contemporaine (2009).
Seu livro mais importante é Gênese do Estado Moderno no RS, resultado de sua tese de doutorado (Porto Alegre: editora Paiol, 2011). Tem organizado vários livros, entre os quais se salienta As Guerras dos Gaúchos (Porto Alegre: editora Nova Prova, 2009).




Parêntese – Essa superpresença de militares no atual governo federal tem similar na história da república brasileira? E de outras repúblicas modernas? 
Gunter Axt – Militarização de governos pode ter aspectos positivos ou negativos e é identificada em quatro eixos: presença física de indivíduos, investimento em Defesa, difusão de doutrinas na administração pública e percepção da política como guerra (e do opositor como inimigo). 
No que tange ao primeiro, existem governos democráticos com forte influência militar (como a Coreia do Sul), assim como nem toda ditadura é dirigida por militares (Julio de Castilhos e Borges de Medeiros, embora com apoio militar, impuseram ditadura civil no Rio Grande do Sul, entre 1893 e 1928; Getúlio Vargas fez o mesmo no Estado Novo, entre 1937 e 1945). Mas evidências históricas mostram que em geral democracias são mais sólidas quando as FFAA são controladas por civis, com transparência e expertise, se tornando mais instáveis quando esse controle diminui. Países dirigidos exclusivamente por militares tendem a ser mais sacudidos por golpes e proclamações, varados por derrubadas e perseguições, gerando instabilidade institucional, que espanta investimentos. As FFAA são vitais para quase todas as nações e fazem muitas coisas boas pela população, mas o militarismo exacerbado pode levar a desastres, como aconteceu no Iraque, na Alemanha (por duas vezes), na Argentina (onde as FFAA jamais recuperaram prestígio, tamanho o debacle), etc… No extremo, se o que impera é apenas a força, caminha-se para um estado anárquico, fraturado por facções, como aconteceu no Haiti.
Com o fim da Guerra Fria em 1989, difundiu-se a ideia de que militares não mais erodiriam governos civis: da Indonésia ao Brasil, as FFAA entregaram o mando, às vezes com relutância, outras com alívio. Na última década, contudo, sua participação vem aumentando, como na Hungria, na Turquia… No Egito, Abdel Sissi, depois de pilotar um golpe, foi reeleito com 97% dos votos. Estudos recentes indicam que mesmo nos Estados Unidos e na Europa a resistência a possíveis governos militares vem diminuindo, o que tem sido indicado como sintoma de doença da democracia. Muitas são as causas, como pressão de potências autoritárias (a exemplo de Rússia e China), crescimento econômico frustrante, aumento da desigualdade, desgaste da elite liberal global, escândalos de corrupção, sensação de ampliação da insegurança e de instabilidade cultural-identitária. Nesse sentido, portanto, o Brasil estaria alinhado a essa tendência. 
Aqui, o fenômeno tem tradição e não aconteceu de repente. Desde a época colonial nossos militares recebem formação que inclui eventualidade de colaboração na administração pública, o que muitas vezes foi feito com denodo e excelente desempenho. Num país continental como o Brasil, as FFAA são vitais para garantir a soberania do território e assistência ao povo em locais remotos. Os militares gerenciam iniciativas fantásticas, como a base na Antártica, ou o monitoramento de nossas ilhas. O saber técnico e o senso de missão são valorizados, especialmente em momentos de crise. Em 2018, o Presidente Michel Temer decretou as duas primeiras intervenções federais da Nova República, em Roraima e no Rio de Janeiro, tendo esta sido dirigida por um general (Braga Neto, hoje na Casa Civil), com apoio da classe média.
Contudo, a atual situação chama a atenção, porque a proporção de ministros militares no governo é superior à verificada na Venezuela, que há anos se afastou da democracia e entrou em relação promíscua com as FFAA. Na nossa história, apenas o governo de Castelo Branco (que cavalgava uma “revolução”) teve mais ministros militares do que Bolsonaro: 12 no total. Os generais e marechais de 1964 a 1985 insistiam ser o regime civil, tanto é que trajavam à paisana. Nessa época, ministérios considerados estratégicos (seja em razão da infraestrutura, em caso de defesa, seja em razão da guerra cultural) se converteram em redutos castrenses, como o do Interior, das Comunicações, dos Transportes e da Educação, sem falar em empresas como Itaipu e Petrobrás. Mas outros, não. Golbery foi O militar na chefia da Casa Civil. E era um intelectual, estrategista, de certo modo até estranhado por colegas de farda como “oficial de gabinete”, intrigante.  No governo atual, infelizmente, não há nenhuma inteligência militar que chegue minimamente próxima da de Golbery. Além de nove ministros, estima-se que quase 3 mil cargos estejam ocupados por militares. Em parte, são chamados porque o bolsonarismo, uma ideologia que menospreza a ciência, descarta a liberdade e banaliza a morte, é animado por incompetentes, de forma que os quadros que trabalham precisam ser buscados em uma corporação organizada. 
O ranking da Defesa é em números absolutos liderado pelos Estados Unidos, que, em números relativos, estão em quarto lugar, atrás da Arábia Saudita, Israel e Rússia, e seguidos pela Índia, França, Turquia, Reino Unido e China. Portanto (com exceção da Arábia, Rússia e China), fica claro que países democráticos estão compromissados com investimentos em Defesa. Os Estados Unidos são o caso clássico das FFAA sob controle civil, cujo símbolo foi a demissão do General Mac Arthur pelo presidente Truman em plena Guerra da Coreia. Lá, militares da ativa não se metem em funções civis, e os da reserva, quando o fazem, jamais falam em nome das FFAA. 
O Brasil tem FFAA de médio potencial ofensivo (alguns estimam ser a 22ª mais poderosa do planeta), mas saiu do regime militar nos anos 1980 com um dos mais baixos investimentos na área, relativamente ao PIB e à população. Além disso, cerca de 80% do seu orçamento é destinado às despesas permanentes, não ao reaparelhamento e a novos projetos. No governo Bolsonaro, a fatia da Defesa cresceu. As áreas social e acadêmica amargaram duros cortes, mas o orçamento militar foi bem menos contingenciado. Isso mostra que a corporação ganhou importância e pode estar identificando esse benefício à relação próxima estabelecida com o governo. 
P – Que doutrina anima essa presença militar?
GA  Sobre a doutrina, ou há uma completamente nova, ou a tradição de pensamento estratégico impactou pouco a atual administração. O liberalismo anti-estatista da Escola de Chicago esgrimido por Paulo Guedes não tinha aderência entre militares, pelo contrário, eles sempre apostaram no desenvolvimentismo keynesiano; e, certamente, a anti-diplomacia de Ernesto Araújo, eivada de sabujice aos Estados Unidos, ofende a tradição autonomista, soberana e lhana das nossas FFAA, sintonizada ao pragmatismo responsável de Rio Branco. O forte discurso anti-intelectualista e obscurantista do bolsonarismo também é estranho às FFAA, que prestigiaram o conhecimento e a ciência. Embora sempre tenham se preocupado com a “esquerdização” das universidades, e precipitado cassações de cientistas, como no famoso “Massacre de Manguinhos”, de 1970, nossos militares investiram nas instituições acadêmicas e criaram ferramentas importantes, como o CNPQ, hoje até sob ameaça de extinção.
Ainda mais desconcertante é o apoio desse governo ao armamento generalizado da população ao arrepio de qualquer controle, de modo a acabar beneficiando o crime organizado, milícias e grupos fascistas, como o tal 300. As FFAA se empenharam historicamente em conter a influência de milicianos no país, torcendo o nariz para eles mesmo quando contavam com sua colaboração, como na Revolução paulista de 1932. Na fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, vários generais se acoelharam em defesa das hemorroidas presidenciais: foi uma humilhação histórica para o Exército. Além disso, aquele festival de palavrões constrangeria qualquer militar, justamente porque eles têm apreço pela dignidade no espaço público, jamais se expressando daquele modo na frente de mulheres, ou num compromisso oficial. Qualquer um que entre numa instalação militar constatará o zelo com o patrimônio público e a fidalguia. 
Por outro lado, surgem já alguns elementos menos centrais a impregnar a administração. Em razão de sua natureza, militares precisam alimentar paranoias. Com o fim do comunismo real e com a aliança com a Argentina, sobrou o fantasma da internacionalização da Amazônia, que tem algumas premissas corretas (como abusos de certas ONGs), mas se ampara numa visão antiquada de desenvolvimento, associada ao slogan dos anos 1970: “integrar para não entregar”, prevendo amplo desmatamento e expansão da mineração. Há também o ranço para com a imprensa e para com o Congresso, ambos datados do fim do período monárquico, quando a corporação foi infectada pelo vírus do Positivismo – que trouxe coisas boas, como o anticlericalismo e o prestígio da Engenharia, mas introduziu essa ideia salvacionista e autoritária que pretende dar ordem unida às instituições. Também é típico dos nossos militares uma disputa com o Judiciário pela herança do Poder Moderador (moderação dos grandes conflitos políticos), que pertencia ao Imperador. Não que qualquer um possa se arrogar a essa condição e exercê-la com eficácia, mas existe essa picuinha corporativa, coisa antiga, como invoca a “Campanha Civilista” de Rui Barbosa em 1910, ou a crise dos habeas corpus durante a ditadura de Floriano Peixoto, que chegou a tentar nomear um médico (Barata Ribeiro, avô do humorista Agildo Ribeiro) para o STF. 
Por fim, a percepção da política como embate e do opositor como inimigo foi disseminada no país sobretudo pelo republicanismo, chegando a nos levar à excruciante guerra civil entre 1893 e 1895 (na qual pereceram pelo menos 12 mil brasileiros, além de incontáveis mutilados) e a inúmeros atentados (sendo o assassinato do Senador Pinheiro Machado em 1915 um dos mais célebres). Nessa época, grassava a praga das Fake News e dos jornais facciosos. Tudo isso pareceu em forte declínio com a redemocratização, pois a Constituinte de 1987/8 funcionou como uma espécie de pacto social, depois do longo período de repressão e de censura imposto pelas FFAA. Infelizmente, a esquerda ressuscitou o monstro, disseminando o discurso do “nós contra eles”, aparelhando blogs, invectivando contra a imprensa, promovendo manifestações de rua em exagero, empurrando o politicamente correto goela abaixo de todos e até forjando os primeiros perfis falsos nas redes sociais. Era óbvio que isso iria provocar reação, que veio em tom mais forte do que o esperado e projetando o conflito para outro nível. Gente que não participava da política, mas se sentia difusamente oprimida pelo discurso de facção do PT, aderiu a um novo movimento de massas, tangido pelas redes sociais, que assume cada vez mais feição fascista, no qual signos e metodologia militarizados estão amplamente presentes. É claro que o debate, o contraponto e a pluralidade produzem renovação da democracia, mas no momento em que a intolerância fascista se expande, as instituições democráticas ficam sob ameaça. 
P – Significa o quê essa presença?
GA – O significado é ambíguo. Não identifico, ainda, unidade de pensamento e diretrizes entre os militares que estão no governo. Além de pautas corporativas, foram sensibilizados por estímulos que os uniram, sendo o último deles a greve de caminhoneiros de maio de 2018, que colocou o país de joelhos. Ali perceberam que poderiam ser chamados a agir para manter as comunicações do País, independentemente de estarem ou não na política; que um movimento poderia derrubar o presidente da República e que a crise institucional se avolumava. Até aí, estavam animados pelo sentimento de missão, que se confundiu também com o forte antipetismo. 
Então, essa presença começou para muitos com uma promessa de renovação ética e de impulso modernizante, na economia, na política. E, de modo algum, era representativa das FFAA, porque se tratavam de indivíduos, já na reserva, portanto, sem comando de tropas. Mas com o desenrolar de inúmeras crises produzidas pelo comportamento errático e corrosivo do presidente, não apenas a corporação começou a ser mais envolvida, como essa participação passou a ser menos percebida como vanguarda de modernização e de ética e mais como barreira de contenção a excessos tresloucados, já que as FFAA demonstraram sobejamente nas últimas décadas seu compromisso com a Constituição e sua condição de entes de estado, não de governo. 
A sobrevida do Ministro Mandetta e a rejeição da nomeação de Osmar Terra para substituí-lo na Saúde, por exemplo, me parecem uma derrota do chamado Gabinete do Ódio e do olavismo e uma vitória de um grupo empenhado na contenção dos arroubos mais violentos e estrambóticos. Vejo da mesma forma a recente nomeação do competente economista Roberto Fendt para a Secretaria de Comércio Exterior, com a missão de recompor as relações com a China, desgastadas por declarações destrambelhadas de ministros lunáticos na Educação e nas Relações Exteriores. Mas isso pode estar mudando. 
No extremo oposto, a normalização das proclamações do General Heleno sugere escalada antidemocrática, não apenas porque afrontam o Congresso, o Supremo e até a Procuradoria-Geral da República, mas porque despertaram o espírito de corpo, como mostra a nota assinada por 89 colegas da turma de 1971 das Agulhas Negras. Heleno é o tipo do general com currículo impressionante e respeitado entre os pares, mas que vocaliza os mais profundos recalques da categoria contra a imprensa, a classe política, o desenvolvimento sustentável, a diplomacia multilateral e o Judiciário. 
Creio que os militares embarcaram nesse governo por idealismo e sincera vontade de ajudar o país, mas agora se dividem entre os que não sabem como sair e os que estão gostando das boquinhas e mamatas, já que as comissões dobram os salários. O bolsonarismo não é hegemônico entre comandantes, mas cresce entre graduados e oficiais subalternos (tenentes e capitães), basta ver o que escreveram em redes sociais alguns dos recentes nomeados para o Ministério da Saúde. Os militares brasileiros, no geral, não querem protagonizar um golpe, mas podem ser levados pelas circunstâncias a endurecer o regime. 
Por outro lado, também me parece verdade que dirigentes fragilizados tendem a inflar a presença de militares em seus governos, como forma de transmitir imagem de força e de confiança que não têm. Isso aconteceu com Salvador Allende, deposto no Chile em 1973. Nesse sentido, o senso de missão pode estar impedindo militares de abandonar o governo em momento de crise e os impele a ocupar posições estratégicas para preparar a transição para o próximo mandatário, na iminência de um impeachment, sobre o qual se fala abertamente em Brasília. Mas a cobra pode morder o próprio rabo e, de repente, eles podem aumentar progressivamente as concessões no sentido da preservação artificial de um governante combalido.
A História mostra ser difícil remover os militares do poder depois que se acostumam às benesses. Além disso, quanto mais a política entra por uma porta do quartel, mais a disciplina sai por outra. FFAA politizadas se tornam facciosas, se convertem em fonte de instabilidade, não de ordem. De garantia à nação, podem se transformar em seus algozes. FFAA politizadas caem rapidamente em desprestígio, interno e externo. Golbery e Geisel fizeram esse diagnóstico e conceberam a chamada “abertura lenta e gradual” para se livrar do abacaxi. Tudo indica que o General Edson Pujol, Comandante do Exército, tem isso bem em mente, mantendo-se discreto e apartando a tropa das vivandeiras (inclusive as que saíram dos quartéis e hoje desfilam de terno e gravatas). A cada provocação descabelada proferida por Heleno, ou por Ramos, sai na imprensa uma entrevista ou artigo do competente Santos Cruz, dos nossos poucos generais com genuína e respeitada experiência de campo, como que vocalizando o bom senso que deve estar provavelmente em sintonia com o General Pujol.  Mas é claro que, independentemente do desfecho, as definições da política no Brasil no horizonte próximo passarão pelos militares, algo que não vivenciávamos com tal intensidade desde a morte de Tancredo Neves, em 1985.
P – Os militares são basicamente do Exército, com presença bem menor da Marinha e da Aeronáutica. Por quê?
GA – Sem participação de oficiais superiores saídos de seus quadros, Marinha e Aeronáutica provavelmente identificaram a chapa de 2018 como uma aventura do Exército, articulada por generais e protagonizada por um tenente que fora empurrado para a reforma por mau comportamento, que construíra seu sucesso político sobre os pilares da mentira e da indisciplina. A sentença condenatória de Bolsonaro de fevereiro de 1988 elaborada por um Conselho de Justificação composto por três qualificados coronéis assinala “desvio grave de personalidade e uma deformação profissional”. Geisel disse no início dos anos 1990, com todas as letras, que o então deputado federal não representava as FFAA e, além disso, era um “mau militar”. 
O Exército resolveu, do modo temerário, desprezar sua própria história. Apesar de rejeitado pelos superiores, Bolsonaro seguiu adorado por capitães, tenentes e graduados, porque assumiu desde 1986 o papel de líder sindical, reclamando para a categoria melhores soldos e condições. Numa instituição hierarquizada, a expressão dessas demandas é considerada indisciplina. Mas como ele havia passado para a reserva, podia. Nos anos 1980 e início dos anos 1990, os militares (que até há pouco estavam no comando) foram atingidos pela crise do estado. Então, havia espaço para pregação sindical. E Bolsonaro surfou nessa onda. Além disso, ele claramente se comportava como expressão daquilo que Delfim Neto chamou de “tigrada”, isto é, a turma que funcionara nos porões da ditadura e que fora silenciada a contragosto depois do fiasco da bomba no Rio Centro, em 1981. Então, esses foram seus canais, até ele se agarrar à pregação contra o suposto “kit gay” e, com isso, se projetar nacionalmente, para além de seu nicho original.
Em 2018, três generais de prestígio avalizaram a candidatura do tenente: Heleno, Mourão e Villas Boas, este então figura de grande liderança na classe. A corporação estava, como mencionei, sendo empurrada de volta para a política, o que começou com o desconforto com certa parcialidade da Comissão da Verdade, avançou com a intervenção no Rio de Janeiro, se consolidou com a greve dos caminhoneiros e se cimentou com a Operação Lava Jato, que desnudou os terríveis esquemas de corrupção da história recente, envolvendo especialmente a esquerda, à qual os militares não eram exatamente simpáticos. O juiz Moro se transformou numa espécie de herói entre eles. E aquele solta-não-solta do ex-presidente Lula protagonizado por um desembargador do TRF 4 os alarmou enormemente. Então, o quadro perfeito se armou, mas para o Exército, não para as outras Armas, que se mantiveram em atitude prudente. 
Há também aí um componente histórico. A doutrina do soldado-cidadão, isto é, do militar interveniente na política, impregnou mais o Exército, em razão da farta difusão do Positivismo entre seus quadros. A Marinha chegou a se opor ao arbítrio. Até hoje, um de seus mártires é o Almirante Saldanha da Gama, morto em combate contra as tropas governamentais em 1895, tendo se batido pelo parlamentarismo e, até, pela restauração monárquica. 
P – No tempo do Império, as Forças Armadas eram concebidas contra inimigo externo, certo? Na República, além de o Exército ter sido protagonista da instauração do novo regime, ele foi empregado contra o povo sublevado, como em de Canudos. Mas parece que foi no tempo da Guerra Fria que os militares brasileiros se pensaram como guardiães da pátria contra um inimigo comunista, que era internacional mas agora estava instalado dentro do país. Como as Forças Armadas se concebem hoje em relação a seus objetivos estratégicos? A doutrina anticomunista da Guerra Fria ainda tem força? Por quê?
GA – A proclamação da República em 1889 foi uma quartelada, talvez o mais funesto golpe que sofremos, porque suscitou em seguida, antes da virada do século, mais dois golpes de estado, várias derrubadas de governos estaduais, uma sangrenta guerra civil que durou quase três anos, conflagrando o Sul do Brasil e bombardeando o Rio de Janeiro, sem falar na perda da nossa Armada, na invasão de nosso território pela França e pela Inglaterra e na maior desorganização já registrada na nossa economia. O tenebroso governo do Marechal Floriano Peixoto, pior governante que o Brasil já teve, foi responsável por um PIB de -7,5%.  Nem Collor de Mello conseguiu marca tão ruim (PIB de -1,2%).
No Império, o Exército também foi empregado contra inimigos internos, como aconteceu nas revoltas do período regencial, aí incluída a Revolução Farroupilha. Mesmo antes de Canudos, foi lançado contra populares, como na Cabanagem (1835-40), onde morreram cerca de 40 mil pessoas. Depois, entre 1912 e 1917, caboclos foram massacrados no Contestado, no Oeste de Santa Catarina, produzindo cerca de 9 mil vítimas. A última conflagração interna na qual o Exército participou foi em 1964. 
O regime pós-1964 de fato desenvolveu a doutrina do inimigo interno (tomando-a de empréstimo aos Estados Unidos) a ser combatido e descreveu o cenário da época como guerra civil. Mas a definição é incorreta, porque pressupõe exércitos contendores lutando com razoável proximidade de meios e, na época, o que se tinha era um estado armado e estruturado enfrentado por forças precárias e dispersas que tentavam fomentar guerrilhas. Aplica-se erradamente, aliás, o conceito de guerra a Canudos e ao Contestado, que foram insurreições populares, e deixa-se de usá-lo para a Federalista (1893-1895), que foi de fato uma guerra civil. 
Embora o fantasma do “perigo vermelho” tenha se difundido na Guerra Fria, no Brasil remonta à fracassada revolução da Aliança Nacional Libertadora, de 1935, que os militares consideram até hoje uma traição indigna. Aquilo foi um erro de Luís Carlos Prestes. A intensa participação de oficiais e suboficiais no malfadado intento unificou as FFAA, até então severamente fraturadas, em torno do combate ao inimigo comum. O anticomunismo ferrenho ali nascido levou água ao moinho que instalou o Estado Novo em 1937 e provocou 1964. 
As FFAA redefiniram seus objetivos estratégicos nas últimas décadas. Resolveram abandonar a política ainda no regime militar, porque perceberam a extensão do equívoco, que as estava destruindo, além de abastardar o país, e apostaram na profissionalização. A doutrina de segurança nacional tornou-se não apenas passado, mas inconstitucional no contexto pós-1988, na qual o papel das FFAA está bem definido. No entanto, é claro que os militares discutem cenários estratégicos e daí podem propor diretrizes para a segurança da nação. 
Fala-se muito hoje em guerra híbrida – informacional, cibernética, tecnológica, etc. – mas não há uma sugestão de resposta clara. Na ESG os militares parecem essencialmente preocupados com questões anedóticas e antiquadas, tais como uma delirante invasão da França ao território amazônico, a distribuição de bombas ou venenos pelos Correios (cada vez mais em desuso em razão das ferramentas eletrônicas) e a aquisição redentora de caças, quando na guerra moderna os drones ganham em importância, assim como a parafernália cibernética. Nossos militares ainda não entenderam sequer que o WhatsApp e as Fake News, por exemplo, se tornaram questão de segurança nacional. Eles próprios hoje se informam no WhatsApp, como mostrou recente matéria do jornal O Estado de São Paulo, e integram um governo que abriga o tal Gabinete do Ódio, espalhando malquerenças, mentiras e facciosismo. Alimentam visões paranoicas, enxergando na mídia tradicional comportamento “golpista”. Também não se houve falar de planos de contingência para áreas de estrangulamento infraestrutural. O que acontece se nosso sistema de distribuição elétrica sofrer um ataque em um nó? O fiasco do governo federal na preparação antecipada à epidemia do Covid 19 ilustra bem essa questão: e com o protagonismo dos generais Braga e Pazuello, o Exército está atraindo para si a responsabilidade pelo desastre. Mesmo na questão amazônica e fronteiriça nosso despreparo é evidente – a forma melancólica como fomos surpreendidos por guerrilheiros colombianos no Destacamento Traíra em 1991 me parece emblemática.
Com a intervenção federal no Rio de Janeiro, em 2018, fiquei com a impressão de que uma nova doutrina surgia em torno da necessidade de combate ao narcotráfico e à corrupção. Ou seja, apareciam indícios de que o Exército passaria a se envolver mais na formulação e gerenciamento de políticas de segurança pública. Isso contemplaria um refluxo do papel das universidades e das ONGs na matéria, algo sugerido de modo muito explícito no filme Tropa de Elite. Creio que avançava a percepção de que o meio acadêmico estava atrapalhando e que havia, além disso, excesso de leniência da legislação penal. Acho que às Polícias Militares também estaria reservado um protagonismo crescente, enquanto as Polícias Civis estariam sendo esvaziadas. Note que, com o aumento da violência no Brasil, nos últimos anos, bem como dos escândalos de corrupção, cresceu na área jurídica um núcleo punitivista, com perda de terreno dos chamados garantistas. Esse movimento aposta num aumento de encarceramentos e no empoderamento das polícias militares, o que, em tese iria ao encontro de um contexto de militarização. 
Bem, apesar do modo tosco, isso de fato vem sendo genericamente implantado no Governo Bolsonaro. Porém, há falhas no suposto projeto: as promessas de novo marco jurídico do juiz Moro para o combate do crime organizado e à corrupção acabaram em parte frustrando, em razão do contexto político conhecido. Além disso, não se vê reflexão dos militares sobre o papel das milícias. Historicamente, o Exército valeu-se do concurso de milicianos, em diversos momentos – quem realmente perseguiu a Coluna Miguel Costa-Prestes, por exemplo, foram milicianos, e não militares –, mas sempre desdenhou e desconfiou dos voluntários, fazendo, a partir do Estado Novo, de tudo para desmobilizá-los. Até porque em várias situações os milicianos criaram problemas por agirem contra diretrizes do Exército, como o Coronel João Francisco Pereira de Souza, na fronteira do Rio Grande do Sul, que apoiou revoluções no Uruguai, entre 1897 e 1904, contrariando o governo Federal. Por sua vez, o regime militar de 1964 se empenhou em controlar as polícias militares, intervindo em seus comandos. Agora, o movimento seria em sentido contrário?
Então, fica a questão: por que não se vê ações mais contundentes do Exército contra os milicianos? Será que as FFAA deixaram de os considerar uma ameaça? A valorização das Polícias Militares contempla carta branca para extra-legalidades, como de resto aconteceu na repressão à subversão sob o regime de 1964? Aliás como os militares estão vendo hoje os cursos de doutrinação para policiais militares promovidos pelo astrólogo Olavo de Carvalho? No Ceará, a recente paralização, além de ilegal, escancarou o alinhamento dos grevistas com o neo-pentecostalismo e o bolsonarismo. Então, de repente o Exército não considera mais essa insubordinação e partidarização da segurança pública uma ameaça? Ou considera, mas foi surpreendido e não sabe o que fazer?
Atualmente, o eixo histérico e histriônico formado pelo Chanceler Ernesto Araújo, o Deputado Eduardo Bolsonaro e o olavismo pretende forjar para o Brasil um inimigo externo, que encarnaria, além do “marxismo cultural” e das ONGs, a China! Bem, duvido que os militares brasileiros estejam dispostos a comprar a tese da atrição com a China, hoje principal parceira comercial do país e uma das maiores potências bélicas do planeta. Por outro lado, acho lamentável que não apareça nenhuma reflexão consistente entre os militares sobre decisões complexas e altamente estratégicas como o 5G – afinal, há risco em recebermos aqui a empresa Huawei de braços abertos?
Esse mesmo núcleo está como que forçando um conflito armado com a Venezuela. Isto exigiu intervenção mediadora do General Mourão no início do governo, para evitar a deterioração excessiva das relações com um vizinho. Mas a contenção foi parcial, porque numa medida sem precedentes em nossa história o Itamaraty retirou todo seu pessoal do país, o que significa que milhares de brasileiros que lá estão ficam desamparados. Isso é quase uma declaração de guerra. Não tenho dúvidas de que é o que querem os bolsonaristas, até porque assim teriam um inimigo externo para distrair a atenção aqui. Mas não consigo ver nossos militares se envolvendo numa rusga dessas com um vizinho, em pleno século XXI, ainda mais considerando que Rússia China e Iran se afirmam como aliados da Venezuela.
Além disso, a esdrúxula proposta de transferência da embaixada do Brasil para Jerusalém, que encanta o segmento neopentecostal, nos criaria um problema desnecessário com os países árabes, que são importantes parceiros comerciais do Brasil. No limite, ao nos envolvermos num conflito que não é nosso, não estaríamos atraindo para cá retaliações inclusive bélicas? 
Por outro lado, se se tenta criar um inimigo para o Brasil, o país está pela primeira vez alinhado automaticamente aos Estados Unidos (e não ganhamos até agora nada com isso). É verdade que tivemos dois ensaios tímidos disso no início da República (1890) e no início do governo do Marechal Dutra (1946), mas nossos militares, apesar da aliança histórica com os Estados Unidos, sempre mantiveram altivez. Bolsonaro chegou a falar em base americana no território brasileiro, uma completa e desnecessária submissão, que foi afastada, mas arrendamos a Base de Alcântara, que era um dos projetos estratégicos das FFAA. A bandeira dos Estados Unidos e a de Israel sobem e descem a rampa do Palácio do Planalto no mesmo nível do estandarte brasileiro, o que, para militares dignos e soberanos, só poderia ser interpretado como ofensa grave. É esse o projeto das nossas FFAA de agora em diante?
Então, tudo isso para concluir que nossos militares nunca estiveram tão mal em termos de capacidade de formulação estratégica. 
P – A impressão é que, a cada nova geração (mais ou menos 30 anos), o a política brasileira recorre aos militares, ou, por outro, os militares se sentem habilitados e intervir no poder. É isso mesmo? Que sentido faz isso? Tem a ver com confiança do povo nas instituições militares? Ou será como que um costume a continuada experiência de intervenção do Exército na política?
GA – Acho que os militares entraram na política com o golpe de 1889 e nela ficaram até a promulgação da Constituição de 1988. Todos os governos civis nesse meio tempo ampararam-se na força militar ou funcionaram como concessões dela. Houve momentos nos quais a intervenção foi explícita, concreta. A chamada República Velha foi sacudida por levantes e revoluções. O Exército não foi fator moderador, mas fortemente desestabilizador, o tempo inteiro. 
Antes mesmo dos anos 1920, tivemos o Contestado, as “salvações” com intervenções nos estados durante o governo Marechal Hermes da Fonseca… Salvador e Manaus chegaram a serem bombardeadas!! O governo Arthur Bernardes (1922 a 1926) se deu praticamente todo sob estado de sítio, recurso utilizado também por outros presidentes. A década de 1930 foi igualmente agitada. Os tenentes pegaram gosto pela coisa em 1922 e não largaram mais o osso. A revolução de 1924 arrasou a cidade de São Paulo e só terminou com a internação na Bolívia da Coluna Costa-Prestes em 1927.
Os militares, obviamente, protagonizaram a Revolução de 1930, que inclusive engajou vários tenentes exilados, que foram depois aproveitados em posições executivas. O mandato de Getúlio, até o Estado Novo (instaurado com indispensável apoio dos generais) foi de agitação contínua nos quartéis. Ainda em 1938 tivemos o putsch Integralista, no qual, aliás, muitos se engajaram (como o pai do Presidente Figueiredo, por exemplo). 
Depois do Estado Novo, tivemos o governo do Marechal Dutra, o suicídio de Vargas (repleto de tensão com militares antes e depois), as tentativas de golpe contra Juscelino Kubitschek, a Legalidade, a rebelião dos sargentos, a greve dos marinheiros…. Houve pronunciamentos em 1954, 1955, 1956… Em 1961, estivemos à beira da guerra civil. Foi apenas com o regime de 1964, que se estendeu muito mais do que os próprios previam, que militares perceberam como a política podia ser nefasta para a própria instituição e, pressionados também pela sociedade civil, dela resolveram se retirar, se profissionalizando, finalmente. 
Aliás, contrariamente ao que seria de se supor, o aparelhamento e a modernização das FFAA são descurados nos momentos nos quais os militares intervêm de modo mais explícito na política brasileira. As FFAA já estavam defasadas em relação ao Chile e à Argentina quando o golpe de 1889 sobreveio. A Revolução de 1893 as destruiu. O Marechal Hermes foi um ótimo ministro da Guerra, mas como presidente (1910-1914), não cuidou da organização das Forças. O Brasil só teve uma missão militar estrangeira (francesa) depois da Guerra Mundial – a polícia de São Paulo começou com a experiência em 1906. A instabilidade dos anos 1920 e 1930 foi péssima para a modernização das FFAA. Mesmo do regime de 1964 não saíram tão bem aparelhadas. Sem falar na corrosão da disciplina causada pela política. O Ministro do Exército Silvio Frota (de quem o hoje general Heleno era assessor) ainda tentou dar um golpe no General Geisel em 1977. 
A imagem das FFAA nos anos 1980 estava desgastada, não apenas por causa do fastio com o arbítrio, mas porque eles entregaram a economia em frangalhos. E podia ser pior: na Argentina, onde as FFAA preferiram levar em 1982 o país à guerra com o Reino Unido para se manter no poder, o país foi mais prejudicado e os militares jamais recuperaram o antigo prestígio. Aqui, nas últimas três décadas, os militares se empenharam eficazmente em reconstituir essa figura. Conseguiram! E agora a estão despejando pelo ralo no governo Bolsonaro.
Sim, eu acho que há aí alguma estranha confluência de fatores. Talvez – por termos tratado com tanta indignidade o Imperador Dom Pedro II, que, com todos seus defeitos, foi um dos nossos melhores estadistas e, talvez, um dos mais republicanos de nossos governantes –, estejamos até hoje numa espécie de loop karmático. Ou seja, 1889 pode ter instalado uma maldição da qual até hoje não nos livramos. 
Os brasileiros de fato, talvez por incultura e ingenuidade, apostam em salvadores da Pátria. E parece que gostam de serem tutelados. O interessante é que quebram a cara e não aprendem. Collor foi o último salvador. Deu errado. Antes, apostaram em Jânio Quadros e, depois, nos militares. Lula também assumiu ares de santidade.
Ora, a receita para se eleger um presidente estável e minimizar as chances de erro é combinar três aspectos, independentemente do viés ideológico: um candidato com suporte de um grande partido, experiência política e administrativa. Collor tinha partido insignificante e vinha de um estado pequeno. Deu no que deu. Fernando Henrique estava amparado numa aliança partidária sólida, tinha sido senador e Ministro. Foi bem. Lula presidia o grande PT, mas nunca tinha administrado nada, de modo que precisou chamar a “gerentona” Dilma para sair do impasse. Dilma fora secretária de estado e ministra, mas não tinha nenhuma experiência político-eleitoral e, de fato quando a crise começou, tudo o que fez foi piorá-la. Temer também tinha os três, conseguiu terminar o mandato, apesar de todos os revezes. Bolsonaro: partido minúsculo e sem tradição, nenhuma experiência administrativa e trajetória política medíocre. Precisa falar mais?
P – Como tu avalias a experiência de governos de centro-esquerda, de FHC a Dilma, na relação com as forças armadas?
GA – Sarney, pelo menos no início, também foi de centro-esquerda. Seu governo viveu a crise militar mais severa da Nova República, justamente com a denúncia da Operação Beco Sem Saída, pela qual Bolsonaro foi julgado em 1988, e em razão do caso de Apucarana, no Paraná, onde um certo Capitão Walter tomou de assalto a Prefeitura em 1987. As ações, sabe-se, estavam interligadas e faziam parte de um complô para protestar por melhores soldos. Os dois foram condenados em primeira instância, mas o STM afrouxou, pois, no fundo, os militares agradeciam a ousadia de ambos em defesa dos proventos da classe. Além disso, o Comandante do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, era, a essa altura, detestado por muitos comandados e colegas, de modo que a soltura dos condenados pelo STM foi uma humilhação endereçada a ele. Por fim, é claro, por meio do STM, os militares aplicavam um corretivo à imprensa, que os vinha zurzindo desde Abertura de Geisel e Golbery. 
Mas, apesar desse conflito, o saldo foi positivo, pois o General Leônidas bancou a posse do vice, José Sarney, depois da morte de Tancredo Neves, e liderou o Exército em direção à democratização e à profissionalização. Além disso, foi no governo Sarney que se iniciou a aproximação entre os Exércitos do Brasil e da Argentina, condição para que se avançasse rumo ao Mercosul.
O governo FHC não foi exatamente de centro-esquerda, mas social-democrata, incorporando componentes do Liberalismo. Conseguiu recuperar um projeto da Constituição de 1946, criando o Ministério da Defesa, que uniu as três Armas e reforçou o controle civil sobre elas. Esperava-se ali grave resistência, mas os militares se comportaram de modo digno e profissional. O saldo foi positivo para o país. 
Novo desafio veio com Lula, que no início dos anos 1980 havia sido processado pela Justiça Militar, sob os auspícios da Lei de Segurança Nacional, em São Paulo e em Manaus, tendo, inclusive, sido preso. Mas como dizia o General Leônidas Pires Gonçalves, Lula não era considerado anti-sistêmico, como o eram Leonel Brizola e Carlos Prestes, o primeiro envolvido na rebelião dos sargentos de 1963 e o segundo protagonista da Intentona de 1935. Então, apesar de tudo, Lula pertencia a uma esquerda palatável, que participava da mesa de negociações. Assim, os militares seguiram agindo de modo profissional, engolindo até mesmo ministros sem a menor intimidade técnica com o campo, como o Embaixador Jose Viegas Filho, que, ainda por cima, pertencia a outra corporação burocrática hierarquizada, a diplomacia. É provável que isso tenha sido silenciosamente percebido como um capitis diminutio. Viegas, ao final, renunciou a saiu criticando as FFAA.
Dos ministros do período, Nelson Jobim se destacava pela autoridade, pois fora deputado constituinte brilhante, ministro da Justiça, presidente do STF, com excelente trânsito pelo PMDB e pelo PSDB. Mas tinha arroubos com oficiais em público que certamente devem ter constrangido a classe, sem mencionar que se vestia de roupa camuflada para incursões na selva, como se militar de carreira o fosse, o que deve ter causado péssima impressão no meio. 
Um problema foi o tratamento radical dado a certas reservas indígenas. A demarcação contínua da Raposa Serra do Sol inviabilizou o Estado de Roraima e criou uma ameaça à soberania na fronteira. Foi um erro da administração Lula, confirmado pelo STF, infelizmente. E tenho a impressão de que o Ministro Celso Amorim estava mais preocupado em garantir autonomia dos índios do que em aparelhar convenientemente as FFAA. É evidente que isso criou enorme mal estar.
Surpreendentemente, um dos ministros que mais caíram no gosto dos militares foi Aldo Rabelo, originário do PCdoB. Foi considerado um sujeito cordial, atento às demandas da categoria e bem enfronhado nos assuntos da Defesa. Hoje, alguns radicais da reserva se queixam de seu passado comunista, mas a verdade é que, na época, ouviam-se elogios a Rabelo em Brasília, nas três Armas. 
No governo Temer, a coisa mudou de figura, pois pela primeira vez um general (Joaquim Silva e Luna) comandou a pasta, num claro indicativo de que os militares estavam reassumindo posições na política. Por outro lado, o protagonismo foi do Exército, não da Marinha ou da Aeronáutica. 
O período todo foi de contenção nos gastos com a Defesa, diante das dificuldades vividas pelo país, mas isso parecia estar sendo superado a partir do segundo governo Lula, com a licitação para a compra dos caças, por exemplo. A missão no Haiti, a pedido da ONU, ajudou a projetar internacionalmente as FFAA brasileiras. Foi um aspecto positivo. Mas, na prática, seguimos investindo pouco, aliás, destinando menos de 10% dessa fatia do orçamento para o reaparelhamento. Foi um erro. Entendo as urgências que o país enfrentava na área social e no campo econômico, mas devemos repensar de forma madura nosso orçamento para a Defesa daqui para a frente, não para que as FFAA não se sintam estimuladas a aderir a alguma facção política que lhes prometa investimentos, mas porque elas têm contribuições importantes a dar. 
Outro grande problema foi a condução parcial da Comissão da Verdade. Os militares se sentiram traídos, como se a Lei da Anistia estivesse sendo suspensa apenas para eles, enquanto seguia valendo para os outros. Além disso, eles passaram a comparar com cada vez mais desgosto o tratamento dispensado às famílias dos soldados mortos –  como, por exemplo, aquele cabo do 2º Exército de São Paulo, atingido em um atentado a bomba, do qual Dilma inclusive teria participado –  com as indenizações milionárias distribuídas até a pessoas que tinham ficado apenas algumas horas detidas. Esse desequilíbrio foi interpretado como revanchismo e gerou um grande mal-estar, que Bolsonaro, muito a propósito, soube explorar. 
Os militares não gostavam dos colegas do serviço de Informações, o famigerado SNI, que se sobrepôs a todos de forma arrogante e intrigante. Mas no momento em que a classe começou a ser atacada, se fechou em copas e se uniu em corporativismo. O relatório da Comissão da Verdade pareceu-lhes estar revivendo os fantasmas da guerrilha do Araguaia e da Intentona de 1935. Isso reascendeu o medo do comunismo. 
Não tenho dúvidas de que as famílias das vítimas da repressão tinham direito a explicações e a memória. E creio que muitos militares concordavam com essa premissa. Mas, no conjunto, aquilo tudo poderia ter sido melhor conduzido. Para piorar, quanto mais fragilizada Dilma ficava, mais se isolava e mais apelava para a vitimização de gênero, aspecto que irritou os meios conservadores, que a esta altura já estavam incomodados com exageros do politicamente correto, cuja visibilidade era negativamente projetada como no caso das alunas “mijonas” da Universidade Federal de Pelotas, de 2015. 
Finalmente, cabe observar que nenhum desses governos se propôs a rediscutir o currículo da formação dos oficiais, o que me parece uma falha. É um absurdo que nossos oficiais conheçam tão pouco de história militar e da história do próprio país. Poucos saberiam, por exemplo, explicar porque o Brasil demorou tanto para se impor na Guerra do Paraguai, apesar da notória superioridade bélica, possuindo o último tipo do armamento a Minié. Essa lacuna os torna reféns de uma narrativa mitômana, que não reconhece fragilidades da própria instituição (e, portanto, não identifica corretamente a necessidade de superá-las) e que romantiza sua relação com a política. Mesmo com a nova geração de militares formados em tempos democráticos, o velho espírito do soldado cidadão e a perspectiva lunática de poder moderador da República seguem animando certo ethos militar brasileiro, o que só pode ser resolvido por meio do estudo. No entanto, ninguém se preocupou seriamente com isso. Os militares brasileiros pouco sabem sobre sua própria história, e aquilo que sabem, em geral, é conto da Carochinha. É por isso também que alunos da ESG produziram recentes ridicularias, tais como imaginar uma guerra entre a França e o Brasil em pleno século XXI. Aí, quando uma ideologia militarista tosca como, o bolsonarismo, circula entre oficiais subalternos, acaba arrebanhando adesões. 
Enfim, nenhum ministro da Defesa do período conseguiu ser considerado uma liderança entre a categoria. E acho que estavam mais preocupados em enquadrar os militares do que os ouvir de fato e integrá-los melhor ao novo país que se construía no pós-1988. Exigiu-se deles sacrifício financeiro e silêncio, mas quando a coisa apertou no Rio de Janeiro, lembraram de convocá-los para salvar a pátria. 
P – Como seria uma relação ideal, na tua visão, das Forças Armadas com a academia e a opinião pública? Há exemplos de relações profícuas de parte a parte? Em que países? 
GA – As FFAA têm de ser uma reserva moral e estratégica da nação, mobilizadas em defesa da soberania e comprometidas com a ciência, o humanismo e a preservação das instituições democráticas. Os militares, pela sua higidez e preparo, têm muito a agregar no debate sobre a formulação de políticas públicas, bem como na execução de algumas delas, mas ninguém quer ver as FFAA envolvidas em questões comezinhas da política, sustentando artificialmente governos combalidos e ineptos, que ofendem as instituições que estamos tentando construir. Eu gostaria de ver os militares sendo capazes de discutir melhor a sua própria história. Também acho que os civis deveriam os ouvir mais. Creio que parte dos problemas que vivemos hoje em dia têm relação com um diálogo meio de surdos que vigorou.