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segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Crônica de uma guerra secreta, de Sergio Corrêa da Costa, resenha de Cecilia Prada (Problemas Brasileiros)

 BEM ANTES DE JAMES BOND 

Cecilia Prada

revista PROBLEMAS BRASILEIROS ( SESC-SP), 2004


Crônica de uma guerra secreta (Record - 2004), escrita pelo diplomata e historiador Sergio Corrêa da Costa, é obra de importância maior da nossa historiografia e capaz de provocar uma leitura apaixonada, um amor à primeira vista, uma funda impressão, no leitor. O autor já começara a realizar em livro anterior, Brasil- segredo de Estado (Record - 2001), um projeto pessoal: embaixador aposentado, empreendera então a tarefa de desvestir-se em público de sua personalidade mais convencional e conhecida durante todo sua carreira  ativa  na diplomacia. Durante a qual vira-se sem dúvida privilegiado, mas  certamente limitado desde sua juventude pela circunstância de ser genro do Chanceler Oswaldo Aranha. Oficialmente encaixado, portanto, no setor mais integralista do Governo Vargas, para assumir - qual moderno Zorro - a outra “profissão”, mais interessante, à qual sempre se dedicara e que mantivera em sigilo absoluto, desconhecida até de sua mulher e de seus filhos. Ou seja: a de investigador e descobridor de alguns dos mais instigantes segredos da história do Brasil.

      Em 1940, recém-admitido ao Itamaraty, descobrira em seu arquivo documentos secretos sobre a revolta dos mercenários alemães e ingleses que serviam na guarnição do Rio de Janeiro, em 1828 - realizada com o apoio secreto do governo argentino e inclusive com a possível participação dos então-exilados Andradas. Se no livro anterior contava como no período de 1944/46 - já no posto de terceiro-secretário, na embaixada em Buenos Aires - conseguira fotografar, “com a perícia de um James Bond, documentos ultra-secretos, altamente comprometedores do governo argentino” (hoje expostos na Academia Brasileira de Letras), é somente no livro de 2004 que conta com detalhes essa proeza. Vencendo “meio século de discrição absoluta”, desvenda seu disfarce de então, a falsa personalidade de “Juan Gutiérrez” que assumiu, inclusive com documentos de identidade falsos, para poder penetrar e agir livremente no Archivo General de la Nación, na repressora Argentina de Perón.

      Mas esse episódio, que em si já valeria um romance de capa e espada, é apenas a ouverture, o aperitivo de uma obra realmente estonteante: a revolta de 1828 foi apenas o estopim da curiosidade do jovem diplomata dos anos 40. O estímulo de que necessitava para se lançar, corpo e alma, numa autônoma e sutil atividade de agente de espionagem, disposto a desvendar todos os segredos diplomáticos que pairavam, abundantes, no relacionamento entre o Brasil e a germanófila  Argentina, naquele final da Segunda Guerra Mundial.

      O livro resultante, que leva como sub-título Nazismo na América: A conexão Argentina, é o mais completo e detalhado mapeamento da extensão, da gravidade da infiltração nazista na América do Sul, e seu público-alvo é “sobretudo a mocidade estudiosa, para que conheça a extensão dos riscos que rondaram o nosso país na década de 1940”. Declara Corrêa da Costa que nunca se contentou em acompanhar os acontecimentos à distância: “Passou a ser quase uma ideia fixa participar, de algum modo, da ação que se desenrolava à minha volta. Posso assegurar que muita coisa se passava, tanto na superfície como nos bastidores”. Quando o Brasil declarou guerra ao Eixo, em 1942, o jovem diplomata não hesitou em alistar-se nas Forças Armadas - onde, no Curso de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), encontrou um capitão que teria a maior influência sobre a orientação posterior de toda a sua carreira. Esse oficial mostrou-lhe documentos que provavam a infiltração nazista no Brasil, ressaltando “o número significativo de militares germanófilos no nosso exército” e “os riscos que oferecia a infiltração integralista, notadamente na marinha”. E contribuiu para que a escolha do primeiro posto de Corrêa da Costa fosse inteiramente consciente - Buenos Aires, tida como sede da irradiação fascista no continente. “Se eu pudesse ir”, diz, “as informações seriam de primeira mão”.

      O que nos dá agora é o mais completo levantamento dos bastidores diplomáticos, da extensa rede de espionagem internacional, com uma riqueza tal de casos e detalhes que a nossa atenção não se desvia do texto um minuto - é um livro este que se devora como se fosse um romance. Ao mesmo tempo em que vamos formando uma ideia exata das circunstâncias do ambivalente Brasil de Vargas, enredado nos conflitos ideológicos da época - cujos caminhos o autor percorre, do alinhamento totalitário do Estado Novo, do levante comunista de 1935 e do integralista de 37, à formação da grande comunidade alemã nos estados do Sul. Uma população que figurava nos planos de Hitler (secundados por Perón) como um verdadeiro exército de Volksdeutsche, força de combate a ser empregada no momento oportuno para subjugação de um país considerado “inferior, racialmente híbrido”, que seria forçosamente desmembrado e dominado. Segundo o censo de 1940, mais de 600 mil brasileiros natos nessa região utilizavam exclusivamente a língua alemã na família; frequentavam escolas alemãs e chegavam a ser treinados militarmente por agentes nazistas infiltrados.

     Em Buenos Aires, nos anos finais da Guerra e no imediato pós-guerra, nosso “James Bond” prosseguiu suas pesquisas históricas, integrando-as com sua vivência do momento - o propósito do governo argentino de assumir a todo custo a hegemonia do continente era exatamente o mesmo, em 1828 como na década de 1940. E se o caudilho Dorrego não hesitara então em tramar até um sequestro do Imperador D.Pedro I para realizá-lo, seu herdeiro Juan Perón não deixava por menos. Corrêa da Costa estuda com minúcias o personagem Perón (e depois também Evita), e deixa expostas todas as tramas da camarilha de oficiais do Grupo de Oficiales Unidos (GOU) que o levou ao poder. Reproduz o manifesto-programa desse grupo, documento classificado como ultra-secreto durante muitos anos, no qual afirmavam : “A luta de Hitler na paz e na guerra, nos servirá de guia”. Definiam a necessidade do estabelecimento de uma política de alianças com outros países sul-americanos, com o objetivo explícito de atrair “facilmente o Brasil, graças à sua forma de governo e aos grandes núcleos de alemães. Caído o Brasil, o continente sul-americano será nosso”.

      Com sua enorme erudição, o historiador interrompe a narração dos acontecimentos do período para remontar às fontes mais antigas do pan-germanismo de final do século XIX-início do século XX, cuja rationale não deixava dúvidas: “Como dispomos da força, podemos dispensar o direito”. E que tinha o propósito, já em 1916, de tomada “da parte meridional do Brasil, onde reina a cultura alemã”.

     Embora Perón declarasse que o destino da Argentina estava intimamente ligado ao da Alemanha de Hitler, não esmoreceu com o término da guerra e a derrota alemã. Prosseguiu implacavelmente nos seus propósitos e investiu maciçamente em uma consciente, constante e explícita transferência de líderes nazistas e criminosos de guerra para seu país, tentando inclusive apropriar-se da tecnologia nuclear acumulada por Hitler. O fracasso da sua “bomba atômica” caseira, “fabricada” em 1952 por um cientista louco e de segunda, Ronald Richter, tornou-se assunto de galhofa e representou o começo do fim de sua pantomima trágica.

     Mas o legado da sua “nazificação” persistiu, como provam a documentação e as estatísticas fornecidas por Corrêa da Costa. Diz ele que antes mesmo do suicídio de Hitler expoentes do fascismo italiano e do nazismo já estavam com suas bagagens em território argentino, no qual deveria renascer, das cinzas do Terceiro Reich, o Quarto Reich, ainda mais apto e mais bem equipado para o domínio da Europa e do mundo. Um relatório de 1947 estimaria em 90 mil o número dos nazistas alemães que se encontravam convenientemente instalados no país. Entre eles alguns dos piores e mais procurados carrascos nazistas.

     O mais estarrecedor, como não hesita em denunciar o respeitado diplomata, é o envolvimento comprovado do Vaticano durante o pontificado de Pio XII, nessa operação maciça de ocultamento e evasãque desde 1945 trilhou a “rota dos conventos”(também conhecida como “caminho dos ratos”) -abarrotando os conventos italianos de fugitivos, alguns dos quais escondidos durante anos a fio, e fazendo funcionários do alto escalão do Reich atravessarem em segurança postos de controle aliados, envergando hábitos religiosos.

Como o próprio vice-Führer Martin Bormann, que, disfarçado de jesuíta e munido de passaporte falso (fornecido pelo Vaticano), chegou à Argentina em 17/5/1948, sendo acolhido pelo Ministro da Guerra Sosa Molina, representante de Perón.

 

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Velhos e novos amigos: as cartas do Dr. Everardo Moreira Lima - resenha de livro por Paulo Roberto de Almeida

 Velhos e novos amigos: as cartas do Dr. Everardo Moreira Lima 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Resenha do livro de Everardo Moreira Lima, Cartas aos Amigos (Rio de Janeiro: N 30 Editorial, 2022, 212 p.; ISBN: 978-85-5484-303-8). 

 

Nunca é tarde para se fazer novos amigos, assim como para continuar cultivando os velhos amigos, inclusive para conquistar novos admiradores entre leitores que estão muito longe no espaço e, talvez, um pouco menos na dimensão temporal. Esta é a impressão que recolho depois de percorrer as cartas, na verdade verdadeiras crônicas (de viagens, de leituras, de trabalho, de aprendizado), escritas ao longo de mais de três décadas, sobre um pouco de tudo, começando pela infância, percorrendo a vida e o tempo, e culminando na pós-verdade, sem esquecer o novo e já velho grande problema da atualidade: o aquecimento global. O livro, prefaciado em janeiro de 2022, e apresentado pelo seu próprio filho, Sérgio Eduardo Moreira Lima –meu chefe, quando nos divertimos juntos, ele na presidência da Fundação Alexandre de Gusmão, eu na direção do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais, entre 2016 e 2018 – é uma coletânea muito bem organizada das melhores “cartas” que o Doutor Everardo dirigiu por iniciativa próprias aos seus muitos amigos, tratando dos temas que mais lhe interessaram ao longo de uma vida intensamente vivida, entre itinerários familiares, viagens de lazer, leituras – autores brasileiros e estrangeiros, de Homero a Garcia Márquez, de Machado a Camus – e uma excelente cartilha (em quatro lições) para o “exercício da cidadania brasileira”.

As orelhas são assinadas por um neto, Leonardo, e a contracapa por ninguém menos do que o nosso antigo Consultor Jurídico do Itamaraty (1985-1990) e juiz, falecido neste mesmo ano, da Corte Internacional de Justiça, Antonio Augusto Cançado Trindade, que destaca o que tinha o prazer de compartilhar com o autor, a lição de Aristóteles, “para quem o bem, para o ser humano, reside no exercício da excelência (que implica perfeição e probidade), podendo a excelência moral ser adquirida pela prática e pelo hábito, e a intelectual com o tempo e a experiência, moldando o comportamento justo com os demais”. As afinidades eletivas entre ambos se explicam por “um gosto comum, o do cultivo do estudo do tempo, não só no universo conceitual do Direito, mas também, e sobretudo, na condição existencial”. Pois foi essa a característica que me chamou a atenção neste livro original, um modelo perfeito para quem sabe, empreender uma obra não semelhante, mas similar?

Destaco, de imediato, como útil para nossa familiaridade com a grande família dos Moreiras Limas, a fotos coletadas por um de seus filhos de alguns integrantes desse grande clã, assim como uma árvore genealógica, do século XIX ao XXI, de todos os antecessores e descendentes deste ilustre membro da advocacia, do Ministério Público, os amigos que lhe fizeram companhia, durante décadas seguidas, em restaurantes do Rio de Janeiro. A afeição por ele demonstrada em direção desses muitos amigos transparece em muitas das cartas, inclusive em viagens, uma das quais à Hungria, quando seu filho Sérgio Eduardo se exercia como embaixador nesse país do finado império soviético. Everardo destaca, num dos textos iniciais, sobre o “significado” destas cartas aos amigos, que 

... desde muito cedo, venho registrando nestes escritos meu ponto de vista contra o desmatamento da Amazônia, pela preservação das florestas e do meio ambiente, como também pela manutenção dos povos indígenas nos territórios onde viveram tradicionalmente, vale dizer, onde sempre estiveram suas tribos, posição esta que tem a finalidade de evitar o aquecimento do planeta e a consequente extinção dos seres vivos, inclusive da espécie humana. (p. 29)

 

Vale destacar, também, de imediato e de modo singularmente atrativo, sua redação límpida, sem adjetivos rebarbativos, num estilo ao mesmo tempo coloquial e erudito, com as muitas referências a autores das mais diversas origens e épocas. A parte IV, dedicada à literatura, explica, provavelmente, a correção da linguagem e a profundidade das reflexões próprias sobre autores os mais diversos, da antiguidade aos atuais, começando pelas três seções de uma “Pequena Estante de Literatura Brasileira” de Manuel Antonio de Almeida (Memórias de um Sargento de Milícia) a Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha) e o inevitável Machado de Assis, que para ele se situa “nos altiplanos da literatura universal” (p. 132). Do criador da Academia Brasileira de Letras, ele cita os romances mais importantes, destacando a originalidade das Memórias póstumas de Brás Cubas (p. 135). Sobre o maior autor brasileiro, ele se refere inclusive a um romance recente, O Homem que Odiava Machado de Assis (por José Almeida Júnior, cujo nome ele não cita), do qual ele não gostou, por ser um “machadista ferrenho” (p. 139), terminando por transcrever o poema que Machado dedicou à sua finada esposa, Carolina, que está no centro das intrigas desse curioso romance de um acusador e inimigo de Machado.

Os muitos textos da primeira seção, trinta mais exatamente, são saborosas crônicas sobre uma saga familiar tipicamente brasileira, com as sucessivas migrações dos estados setentrionais até o estabelecimento na segunda capital da República, mas com ramos que se espalharam em outros estados e até mundialmente. A parte III é inteiramente dedicada a uma viagem com amigos de trabalho a Portugal, objeto de trinta páginas de uma bem planejada incursão na terrinha, em março e abril de 2018. A Parte V, A Vida e o Tempo, é, talvez, a mais reflexiva, e instrutiva, de todo o livro, com considerações de grande densidade intelectual sobre as vários noções do tempo, nas obras e pensamentos de filósofos famosos (de Aristóteles, na antiguidade, ao francês Comte-Sponville), mas também oferecendo lições de história – calendários juliano e gregoriano, por exemplo – e os ensinamentos próprios que o Doutor Everardo adquiriu na fruição dessas obras e na absorção do significado dessa abstração que não tem existência tangível. Como ele mesmo explica: 

O tempo não está na consciência como uma coisa, somos nós mesmos que o intuímos pelos sentidos e convencionamos os padrões de sua medida em relação a coisas para facilitar a comunicação.

Não é o tempo que passa, somos nós que passamos. Tudo na natureza nasce, vive e morre. Somos protagonistas e testemunhas desse ciclo inexorável. (p. 175)

 

Na última parte, VII, dedicada à Pós-Verdade, há toda uma reflexão, distribuída em quatro textos de títulos similares, sobre os “fatos alternativos”, expressão utilizada “pela primeira vez por George Orwell (Eric Arthur Blair) no seu livro “1984”, lançado em 1949, como forma de o Estado totalitário apresentar sua versão dos fatos” (p. 208). Doutor Everardo faz a imediata conexão com as práticas do inacreditável presidente americano dessa época (2017), Trump, o ídolo do presidente brasileiro eleito um ano depois (mas esse repetidor de “fatos alternativos” não comparece em nenhuma das cartas). O epílogo dessas cartas é oferecido com todo o carinho do Doutor Everardo: 

A título de epílogo, gostaria de agradecer aos meus leitores e dizer-lhes do meu prazer, ao longo dos últimos trinta anos, em poder escrever a Carta aos Amigos e da satisfação ainda maior em receber comentários. Seria difícil de imaginar, que aos 98 anos pudesse manter vivo o desejo de comunicar-me com esse pequeno universo de pessoas com quem compartilhei estórias, impressões e sentimentos. (p. 211)

 

Bem mais do que isso, Doutor Everardo, seu livro teve o poder de “fabricar” novos amigos, mesmo distantes e num formato virtual. Aprendi muito com suas dezenas de cartas, não apenas pelo estilo claro, sincero, transcendendo simpatia com amigos e, sobretudo, o seu caráter íntegro, honrado e intelectualmente honesto e modesto. Dele retirei inspiração e um modelo para lançar-me num empreendimento não semelhante, mas certamente similar.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4279: 28 novembro 2022, 3 p.


terça-feira, 4 de outubro de 2022

Resenha de A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824, por Evaldo Cabral de Melo - Paulo Roberto de Almeida

 Uma resenha quase que pertencendo à categoria do "what if?", mas que tinha sido pouco divulgada na época, pois a revista do Ipea que a publicou já não existe mais.

História quase virtual do Brasil

 

Evaldo Cabral de Mello: 

A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824

(São Paulo: Editora 34, 2004, 260 p.; ISBN: 85-7326-314-8).

 

            Estamos tão habituados à versão tradicional da independência do Brasil, de cunho unitário e quase que “naturalmente monarquista”, que negligenciamos outros modos possíveis de desenvolvimento da nação ou de formação do Estado. Já não falo de uma história declaradamente virtual, que poria em confronto “o que efetivamente se passou”, segundo a visão rankeana, com possibilidades inesperadas ou puramente hipotéticas, como uma separação holandesa do Nordeste, em caráter permanente, ou um movimento inconfidente bem sucedido nas Gerais, de caráter republicano, ou ainda uma divisão de fato entre as várias províncias do norte e do sul no processo de independência, o que teria conformado um arquipélago de nações luso-parlantes na América do Sul (a exemplo da fragmentação hispano-americana na vertente andina). 

            Este novo livro do diplomata-historiador (ou vice-versa) Evaldo Cabral de Mello explora justamente essa última possibilidade, a de uma outra independência possível, não como hipótese virtual, mas como realização efetiva, tal como tentada nas cidades e nos campos da Bahia e de Pernambuco, entre a insurreição precoce de 1817 e a Confederação do Equador em 1824. Esses movimentos, junto com outros do Sul, ficaram agrupados sob o amálgama enganador de “separatismo”, ao passo que os construtores do Império, a partir do Rio de Janeiro, passaram para a história com o beau rôle de unitários e de nacionalistas. Essa é, porém, uma perspectiva equivocada, uma vez que, no momento da independência, o Brasil era tudo menos Brasil, e sim um ajuntamento de províncias que se relacionavam mais com a metrópole (ou com a África, por exemplo) do que entre si. Luiz Felipe Alencastro já tinha alertado para esse arquipélago de sistemas desvinculados entre si, sem unidade econômica real. 

            Este livro conta a história desse “destino não manifesto”, traduzido no desejo de algumas elites regionais, no caso as do Nordeste, de recuperar o poder local perdido quando da vinda da família real e a centralização operada em favor do Rio de Janeiro. O federalismo, segundo Evaldo, era uma possibilidade real, se alguns destes processos não tivessem ocorrido: a manutenção da dinastia bragantina no Rio, um tratamento mais conforme às aspirações das elites regionais pelas Cortes de Lisboa e a determinação da “administração” da Corte no Rio em preservar sua posição hegemônica. Mas foi uma luta bárbara, na qual a força foi mais importante do que a persuasão. A historiografia ulterior alimentou o “rio-centrismo”, descurando ou desvalorizando os “separatismos” regionais, uniformemente agrupados na rubrica contrária à unidade nacional, quando o que eles pretendiam, na verdade, era uma forma diferente de organização do Estado (e do equilíbrio entre as províncias), provavelmente mais conforme ao modelo proposto nos Estados Unidos poucas décadas antes. 

            A Bahia, como se sabe, ficou sob ocupação portuguesa no episódio da separação, razão pela qual coube eminentemente a Pernambuco a liderança federalista, quando na verdade ambas as províncias tinham condições econômicas de sustentar um modelo diferente, singularmente autonomista, de construir um Estado não centralizado, ainda que passavelmente unitário, sob a égide da monarquia (mesmo se muitos liberais fossem declaradamente republicanos). Longe de obedecerem a impulsos regionais anárquicos e anti-patrióticos, como a propaganda fluminense quis fazer acreditar (dando os exemplos caóticos dos estados hispano-americanos), os patriotas do Nordeste queriam a verdadeira liberdade e a igualdade, num regime de poderes compartilhados. 

José Bonifácio foi, neste caso, menos sábio do que o habitualmente afirmado, pois que, partindo da idéia de uma “peça majestosa e inteiriça desde o Prata até o Amazonas”, denegriu o projeto federalista, assimilando-o ao republicanismo e acusando seus líderes de pretenderem um “governo monstruoso”, para serem nas províncias “chefes absolutos, corcundas despóticos”. Os “bispos sem papa”, no dizer de Bonifácio, foram esmagados e assim o Brasil continua a ser até hoje, a despeito da ironia de carregar no nome o adjetivo federalista, a mais unitária das repúblicas americanas.

 

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)

Brasília, 1411: 20 março 2005

 

1411. “História quase virtual do Brasil”, Brasília, 20 março 2005, 2 p. Resenha de Evaldo Cabral de Mello: A outra Independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824 (São Paulo: Editora 34, 2004, p. 260; ISBN: 85-7326-314-8). Revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, ano 2, nº 9, abril 2005, p. 71;). Republicada na revista Plenarium (Brasília: Câmara dos Deputados, Ano II, nº 2, novembro 2005, p. 343-344). Relação de Publicados nº 548.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Resenha de Laços de Confiança, de Celso Amorim, por Sergio Leo

 *Anotações do ex-ministro Celso Amorim revelam disputa e desconfiança na diplomacia brasileira*

Em “Laços de confiança”, ex-chanceler destaca relação com países vizinhos

Por Sergio Leo — Para o Valor, de Brasília

15/07/2022 05h03  Atualizado há 3 horas


“Por que o senhor dá tanta atenção à América do Sul?”

“Porque moro aqui.”

O diálogo, com um repórter, é contado pelo ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa Celso Amorim, na obra recém-lançada “Laços de confiança”, da editora Benvirá; e traduz a tese que inspirou o livro: a atuação do Brasil no mundo exige maior atenção aos vizinhos, e iniciativas para o desenvolvimento dos países sul-americanos. Sem a integração bem-sucedida com a vizinhança, sugere o ex-ministro, a região corre o risco de ficar a reboque de interesses de grandes potências com grande força gravitacional, como os Estados Unidos.

Amorim, ministro de Relações Exteriores nos governos Itamar Franco e Luiz Inácio Lula da Silva, relata sua intensa - e atribulada - interlocução com um leque variado de governantes, do republicano George W. Bush ao bolivariano Hugo Chávez. O título do livro, “Laços de confiança”, é a citação de um comentário do ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe, um dos improváveis parceiros nas iniciativas diplomáticas do ex-ministro.

“Mostrar que a realidade já foi outra e que é possível a construção de uma América Latina e Caribe fortes, unidos em sua diversidade, é um dos objetivos deste livro”, explicita o diplomata, lamentando o amadorismo na diplomacia do governo atual.

Ao lembrar da disputa acirrada entre argentinos e uruguaios em torno da instalação de poluidoras fábricas de celulose no rio Uruguai, Amorim queixa-se de que a briga foi usada pelos críticos de sua política externa “altiva e ativa”, para desdenhar de suas ambições de tornar o Brasil um mediador confiável - até em desafios distantes da região, como no acordo nuclear com o Irã. Outros momentos mais felizes, porém, como a solução de conflitos entre a Colômbia e vizinhos, credenciaram o país a ser visto como interlocutor confiável e importante na formação de consensos, defende.

Os diários de Amorim que inspiram o livro dão pistas sobre, por exemplo, a visão, à esquerda, sobre o acordo de comércio firmado - e ainda não ratificado nos parlamentos - pelo Mercosul com a União Europeia: temas importantes para os europeus e aceitos sem muito debate nos últimos governos brasileiros, como reforço dos direitos de propriedade intelectual, fim de exclusividade de comprar do governo para fornecedores locais e redução da proteção a setores industriais considerados estratégicos foram e continuam assuntos caros ao antigo chanceler e seu entorno político.

Ao contrário da imagem de leniência com países vizinhos popularizada pelos críticos da política externa durante as gestões de Amorim no comando da diplomacia, as anotações reproduzidas pelo ex-ministro mostram inúmeras disputas e desconfianças na diplomacia brasileira para administrar o jogo político e econômico entre os governos de esquerda que eram maioria no continente.

O então presidente Lula é mostrado ora inclinado a aceitar argumentos dos companheiros governantes de esquerda, ora irritado e duro na negociação com eles, como nas discussões com a Petrobras sobre os interesses da empresa na Bolívia. O petista usa o Itamaraty para fazer um jogo ambíguo com os governos vizinhos, temerosos do “sub imperialismo” brasileiro.

Em uma das passagens mais surpreendentes do livro, Amorim revela a orientação recebida do presidente, digna do “brasileiro cordial” descrito por Sergio Buarque de Holanda: “Celso, é melhor você tomar conta da Bolívia. Eu não posso. Fico com muita pena quando vejo aqueles indiozinhos pobres”.

Curiosamente, governos à direita, como os dos colombianos Álvaro Uribe e Juan Manuel Santos, mostram-se, nos relatos de Amorim, de mais fácil diálogo, reconhecidas diferenças evidentemente inconciliáveis em questões como a maneira de tratar a guerrilha colombiana. No caso das atribulações com os guerrilheiros, que ocupam boa parte dos relatos sobre a Colômbia, prevaleceu, com Santos, porém, a lógica defendida por Amorim, de tratar os guerrilheiros como insurgentes, e negociar sua incorporação à política democrática.

“A esquerda às vezes dá mais trabalho”, desabafa Amorim, ao relatar atritos com o uruguaio Tabaré Vasquez e o paraguaio Fernando Lugo. Apesar da convicção em favor dos chamados governos progressistas na região, por suas políticas claramente favoráveis à maior distribuição de renda e autonomia econômica, não faltam críticas ao “radicalismo” de Hugo Chávez, na Venezuela, e do governo Kirchner, na Argentina, dos quais o livro dá inúmeros exemplos.

Chávez é criticado por seus “arroubos” e gestos preocupantes e contraproducentes, “entre o burlesco e o provocador”. “Respeitamos o que Chávez quer fazer dentro da Venezuela”, disse o então presidente da República, em conversa com George Bush relatada por Amorim; “mas quando atua na região”. O diálogo, aliás, é um dos bastidores do esforço lulista de mostrar-se como mediador nas relações dos bolivarianos com governos dos EUA.

Para Amorim, Chávez tinha legítimo interesse em melhorar a vida dos venezuelanos, e enfrentar “com coragem uma elite reacionária, que sempre se locupletou com as receitas do petróleo e cuidou pouco da população pobre”. Mas trazia ameaças à estabilidade da região, que o Brasil tinha o dever de administrar diplomaticamente

“A Venezuela nunca poderá promover a ‘revolução bolivariana’ em países de sociedades complexas como o Brasil e a Argentina, mas pode causar estragos de monta em nações mais frágeis e fragmentadas como a Bolívia e o Equador”, comenta Amorim. “Até aqui, nossa estratégia tem sido a de atrair a Venezuela, integrando-a ao Mercosul.”

O cuidado da edição em trazer notas e índices onomásticos, uma excelente característica dos livros de Amorim, ajuda a atravessar a aridez de alguns trechos com mais concessões ao patuá dos negociadores internacionais. O ex-chanceler deixa um documento importante, fonte de abundantes elementos para analisar a política externa recente e seus possíveis rumos no futuro.

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2022/07/15/anotacoes-do-ex-ministro-celso-amorim-revelam-disputa-e-desconfianca-na-diplomacia-brasileira.ghtml

domingo, 12 de junho de 2022

O acadêmico e o militante: resenha do livro de P.R. Almeida, Apogeu e Demolição da Política Externa, por Sergio Florencio

 O acadêmico e o militante

 


Resenha (parcial) do livro de Paulo Roberto de Almeida: 

Apogeu e Demolição da Política Externa. Itinerários da Diplomacia Brasileira

Curitiba: Editora Appris, 2021.

Embaixador Sérgio Florêncio (12/06/2022)

 

O livro de Paulo Roberto de Almeida (PRA) é um percurso rico de dados e de reflexão sobre os territórios vizinhos da política externa e da diplomacia brasileira. É o denso depoimento de um diplomata de carreira que combina duas vocações raramente conciliáveis – o acadêmico e o militante. Geralmente situadas em terrenos opostos, quando as duas vocações se encontram, podem render bons frutos. É o caso de “Apogeu e Demolição da Política Externa. Itinerários da Diplomacia Brasileira”. 

A primeira explicação para esse difícil, mas frutífero encontro entre os dois personagens - o acadêmico e o militante - reside, no caso de PRA, no confronto entre uma formação intelectual sólida e diversificada – sociologia, relações internacionais, economia, história - e uma indomável natureza contestatária. 

Outra explicação resulta da trajetória profissional do autor, com experiência em postos de relevância política, como Washington, e de peso econômico, como Genebra e ALADI. Seu trabalho com dois embaixadores de reconhecido valor – Rubens Barbosa e Rubens Ricúpero – certamente também teve influência positiva. Ao mesmo tempo que ambos reconheciam o conhecimento e a erudição acadêmica de PRA, tiveram generosidade suficiente para respeitar sua natureza indômita de polemista, numa instituição pautada pela disciplina e pela hierarquia. 

Mas o reconhecimento do valor de PRA, por parte de colegas e amigos, não impediu que fosse vítima de injustiça. Suas contundentes críticas aos desvios e excessos da diplomacia da era Lula-Dilma lhe valeram longo ostracismo que estacionou sua carreira por uma década e meia. Somente na gestão do Chanceler Aloysio Nunes, no governo Temer, o valor de PRA foi resgatado. Então, como Diretor do Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais – IPRI, teve desempenho exemplar e altamente dinâmico. Foram frequentes os seminários no Instituto, sempre com a participação de prestigiosos acadêmicos brasileiros, norte-americanos e europeus. Era o homem certo no lugar certo. 

Mas o iluminismo foi efêmero. Bolsonaro assumiu a Presidência da República e logo inaugurou a barbárie numa instituição de reconhecida excelência. Com o auxílio do chanceler Ernesto Araújo, passou a vigorar a inédita diplomacia do delírio, da submissão, do orgulho de ser pária internacional, como por ele próprio declarado em formatura de alunos do Instituto Rio Branco. O destino estava traçado. PRA foi afastado do IPRI e por um motivo tão ridículo que merece ser lembrado – autorizou a publicação, nos Cadernos de Política Exterior da FUNAG, de entrevistas de FHC, de Rubens Ricúpero e do próprio chanceler. 

Recordo aqui essas adversidades da trajetória profissional porque PRA soube sublimá-las de forma original e criativa. Recolheu-se à Biblioteca do Bolo de Noiva, onde escreveu vários livros, produziu artigos contundentes, mas fundamentados, contra a atual política externa. O acadêmico abraçava o militante. 

 

A contribuição da historiografia para entender o pensamento diplomático

O livro tem grande utilidade para o momento atual do Brasil. PRA relata e analisa a “grande marcha” da diplomacia e da política externa, com foco mais detido nas últimas décadas e na passagem do Apogeu (1990-2010) para a Demolição (2019 até hoje). Atenção maior é dada à transição de uma diplomacia profissional, prestigiada no mundo pela credibilidade (período FHC) e pela projeção (era Lula), para uma diplomacia personalista, inimiga do interesse nacional: Presidente e Chanceler determinam aquilo que precisa ser “destruído”, de forma a adequar o sólido patrimônio do passado aos ditames de um governo de extrema direita, isolado no mundo e orgulhoso de ser pária internacional.

Apesar de ter o foco voltado para as últimas décadas, o livro começa pela historiografia das relações internacionais do Brasil. Assim, cobre terrenos que ajudam o leitor a melhor visualizar a transição do Apogeu para a Demolição, tanto no plano substantivo (política externa), como no plano operacional-institucional (diplomacia). 

Nesse início do livro, o leitor fica familiarizado com a contribuição para a política externa de conhecidos historiadores, como Francisco Varhagen, Oliveira Lima, João Ribeiro e Pandiá Calógeras. Ao mesmo tempo, são relembrados os grandes livros de síntese da história das relações internacionais do Brasil: Hélio Vianna, Delgado de Carvalho, José Honório Rodrigues, Amado Cervo, Clodoaldo Bueno e Rubens Ricúpero.

O acadêmico não deixa de registrar o valor do pai da historiografia, Varnhagen, mas o militante não perde a oportunidade de, citando José Honório Rodrigues, revelar a sombra desse pai – “extremamente parcial, adulador dos mais poderosos”. 

 Em Oliveira Lima – o maior dos historiadores diplomatas – destaca duas avaliações centrais sobre a política externa do Império: (i) “A Grã-Bretanha nunca exerceu sobre o Brasil a espécie de protetorado que, sob o disfarce de aliança, há um século exerce sobre Portugal”; e (ii) Ao analisar as questões do Prata, reconheceu que “a política de intervenção nunca aproveitou ao Brasil”. Acrescenta ainda que essa política, desde a Cisplatina, foi antagonizada pelos argentinos. “A guerra do Paraguai foi uma consequência da política brasileira, de intervenção, combinada com o exclusivismo ofensivo do segundo Lopez”. Sobre Mauá, “talhado para ser o agente de nosso imperialismo” ressalta a política de “franca intervenção” e especula que “a política do patacão teria porventura evitado a chacina”. 

Pandiá Calógeras, Ministro da Agricultura, Fazenda e o primeiro civil Ministro da Guerra, considerava a política externa como “um prolongamento da política interna, da mesma forma que Clausewitz considerava a guerra como a política que se desdobra nos campos de batalha”, o que lhe valeu o epíteto, atribuído por Tristão de Athaíde, de “o Clausewitz da história diplomática”. 

Dentre os manuais didáticos de história diplomática, PRA lembra a contribuição de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, que desenvolvem os conceitos de “alinhamento” e de “nacional desenvolvimentismo”. Mas os destaques maiores se dirigem a José Honório Rodrigues e a Rubens Ricupero. Para o primeiro, as premissas básicas de nossa política externa, desde a época colonial, sempre foram a acumulação de poder e a manutenção do status quo. Sustenta ainda que “toda política externa é uma expressão do poder nacional, em confronto antagônico ou amistoso, com os demais poderes nacionais”.

“A Diplomacia na Construção do Brasil”, livro seminal de Rubens Ricúpero, tem como motivação principal mostrar como a política externa era um fio inseparável da trama da história nacional. Para Ricúpero, nossa bibliografia os quase não falavam de política externa. Já as histórias diplomáticas continham o erro oposto: só tratavam de diplomacias, sem mencionar a política interna e a economia. Sobre isso, PRA escreve. “Ao produzir, portanto, sua versão da história da política externa, ele procurou mostrar como a diplomacia ajudou a dar forma à história e à identidade do Brasil”. Nessa linha, a diplomacia marcou profundamente cada uma das etapas definidoras de nossa história: abertura dos portos; independência; fim do tráfico de escravos; inserção no mundo (comércio, migrações, consolidação da unidade nacional – ameaçada pela instabilidade na região platina) ; modernização; industrialização; e desenvolvimento econômico. Essas marcas profundas na nossa história refletem a grande orientação “vocacional” da diplomacia brasileira: o trabalho de consolidação da independência e o reforço do processo de desenvolvimento econômico. 

 

As relações internacionais em perspectiva

 

(i)             A herança portuguesa: maldita na economia, bendita na diplomacia

O Estado brasileiro surgiu com a grave questão do reconhecimento do novo país, particularmente por parte da Grã-Bretanha, com a qual tínhamos pesados compromissos: o tratado de comércio de 1810; os empréstimos contraídos pela Coroa e assumidos pelo Brasil; e o problema do tráfico, o irritante nas relações, agravado pela prepotência britânica. A outra vertente de preocupação para a diplomacia imperial era o sempre precário equilíbrio no Prata. Era necessário sobretudo garantir a independência de Uruguai e Paraguai, ameaçados pelas pretensões argentinas de reconstruir o Vice-Reinado do Prata. A intervenção brasileira no Uruguai irritou Solano López e culminou na tragédia humana da Guerra do Paraguai, e no caos financeiro de sucessivos empréstimos externos.

A República nasce simpática aos EUA, entoando o refrão do Partido Republicano “Somos da América e queremos ser americanos”. (P.78) Mas a política externa ficou marcada pela falta de rumos, visível na sucessão de onze chanceleres em dez anos. Essa instabilidade da Velha República só foi estancada pelo Barão do Rio Branco, Chanceler durante dez anos, a quem coube a transição da velha hegemonia imperial britânica para a crescente ascendência da nova potência norte-americana. 

PRA conclui a breve referência ao Barão com interessante comparação com Oswaldo Aranha, que conseguiu “preservar tanto a autonomia do Brasil quanto alianças estratégicas ... numa conjuntura em que muitos apostavam na ascensão das potências fascistas”. (P.80) 

 

(ii)           Vargas e o segundo maior chanceler da história. JK sem Plano Marshall. O saudosismo inerente à PEI.

A referência de PRA à era Vargas também começa com um justo tributo a seu grande chanceler. “Sem a ação de Aranha talvez jamais tivesse acontecido a revolução de outubro de 1930 ... e talvez o Brasil tivesse ficado na incômoda posição dos argentinos, que se mantiveram neutros - na verdade simpáticos aos nazifascistas – até quase o final da guerra.” (p. 80)Os tributos prestados por PRA ao Chanceler contrastam com sua visão ácida a respeito do presidente, “Getúlio Vargas, como se sabe, era basicamente um hesitante, ainda que com várias qualidades maquiavélicas ... para preservar-se no poder durante breves 15 anos, como ele mesmo mencionou”. (p. 80) 

Ao avaliar a República de 1946, PRA cita Hélio Jaguaribe, para quem praticávamos então uma política externa tradicional, por ele chamada de “ornamental “e que outros apelidavam de “punhos de renda”. “De fato, antes que os militares entrassem com seus punhos de aço ... os bacharéis da diplomacia brasileira conduziram ... um alinhamento ao Ocidente durante a Guerra Fria, com alguns momentos de aparente modernização.” (p. 81). 

Nesse período, que coincide com a criação da OEA, na Conferência de Interamericana de Bogotá, em 1948, com a ascensão da CEPAL, com a Operação Pan-Americana de JK, a grande aspiração do Brasil era “que os Estados Unidos financiassem uma espécie de Plano Marshall para a América Latina”. (p.81) Na análise desse momento relevante de nossa história, PRA contrasta com muitos historiadores que lamentam e criticam a falta de visão e de solidariedade dos EUA em relação à América Latina e ao Brasil, ao negar vultosos recursos para o desenvolvimento da região.

 Em lugar dessa visão mais convencional de um antiamericanismo, o livro focaliza a ausência de reformas essenciais para habilitar a região a fazer uso produtivo de eventual ajuda externa. “Os EUA sempre responderam - aliás pela boca do próprio Marshall, em Bogotá - que os países latino-americanos deveriam reformar e modernizar suas estruturas econômicas, abrir-se ao comércio e aos investimentos estrangeiros, e apoiar- se bem mais nos capitais privados do que em grandes projetos governamentais, se desejassem manter ritmos de crescimento sustentável, ademais de melhorar a educação, a distribuição de renda e de terras.” (p. 81)

Essa manifestação do credo liberal de PRA fica clara ao enfatizar que o país “deu seu primeiro passo no sentido de avançar na industrialização plena nessa época”. “O Brasil, em todo caso, soube fazer algumas escolhas estratégicas, como foi a industrialização impulsionada pelos capitais estrangeiros da era JK, que os nacionalistas da época depreciavam como sendo entreguista e submissa ao imperialismo.” (81) 

Ao analisar esse período de nossa história que vai de Vargas a 1964, PRA explicita sua visão de mundo liberal. Podemos ver isso com mais clareza ao contrastar o perfil que ele traça de dois personagens -chave de nossa história. Um Vargas – “como se sabe, era basicamente um hesitante” - e um Juscelino, arquiteto do “primeiro passo (do Brasil) no sentido de avançar na industrialização plena “. (p. 81). Assim, na visão liberal de PRA, o “primeiro passo” não consistiu na substituição de importações operada por Getúlio com seu keynesianismo anterior a Keynes CSN, mas sim com o take off de JK, com os capitais privados da indústria automobilística e outras. 

Estamos visualizando o PRA militante liberal. Esse perfil se consolida, no plano da diplomacia, em sua avaliação bastante cética da “política externa independente”, iniciada com Jânio Quadros e Afonso Arinos, continuada com Jango e Santiago Dantas, que “converteu-se numa espécie de mito histórico, tendo sido magnificada muito além das realizações efetivas; ela aparece, retrospectivamente, como tendo sido excepcional, devido, em certa medida, à radical reversão de orientações na primeira fase do regime militar. “As a avaliações acadêmicas sobre a PEI, assim como as dos próprios diplomatas, estão talvez ainda impregnadas de certo viés saudosista e de algum sentimento de perda”. (p. 82) 

 

(III) Regime militar. Retrocesso na política doméstica. Avanço na economia, mas amplo estatismo. Política externa livre de interferências: o soldado valoriza o diplomata 

PRA avalia COM realismo e equilíbrio o regime militar, que reconhece como “período feito de grandes traumas políticos, é verdade, mas também de grandes avanços econômicos, ainda que marcados pelo grande centralismo estatal e uma política de enorme aquecimento da máquina econômica, o que parece ter ecos ainda hoje”. (p. 82)

Passado o triste, mas breve, interregno do alinhamento automático, com nossas tropas presentes na intervenção na República Dominicana, PRA assinala corretamente o padrão desenvolvimentista e terceiro-mundista da política externa do regime militar, em linha com teses reformistas da ordem internacional: tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento (PED’s), princípio da não-reciprocidade no comércio internacional e maior acesso a mercados, por parte das economias em processo de industrialização. 

Entretanto, essas virtudes precisam ser matizadas. “Os problemas da nova postura não estavam aí, contudo, e sim na tentativa de capacitação nuclear plena, inclusive para fins não declarados” (p. 83) e o rol de constrangimentos: salvaguardas aplicadas às tecnologias duais e sensíveis, conflitos potenciais com países nucleares e rivalidade com a vizinha Argentina. Os acertos na economia e na política externa tampouco escondem o abominável envolvimento do regime no “sangrento golpe militar” no Chile, contra o Presidente Salvador Allende e em outras operações clandestinas no Uruguai e na Argentina.

A avaliação do período me parece muito correta tanto no plano da substância (política externa), como na esfera institucional (diplomacia). “Pode parecer estranho, mas foi um dos períodos em que os diplomatas se sentiram mais “livres”... a corporação dos militares respeitava muito a casta dos diplomatas e lhe concedeu, salvo em poucas áreas consideradas de segurança nacional, ampla autonomia política e operacional”. (p. 84) Tendo subjacente a fórmula de Raymond Aron – soldados e diplomatas são os dois funcionários por excelência do Estado – PRA se refere ao “mútuo respeito que mantinham as corporações mais tradicionais do Estado brasileiro”. (p. 84) Daí deriva tanto o diagnóstico de “relativa introversão do corpo diplomático”, como o refrão elogioso de diplomatas latino-americanos – “Itamaraty no improvisa”. 

 

(iii)         As múltiplas vertentes da redemocratização. Experimentalismo que levou à hiperinflação. Reformismo econômico e credibilidade externa (FHC). Projeção externa matizada pelo partidarismo (Lula). O declínio da diplomacia (Dilma) e sua volta ao leito normal (Temer). 

O período pós-1985, foi marcado pela Constituição de 1988, portadora de importantes conquistas sociais mas, como corretamente apontado por PRA, também com impacto negativo, “distribuindo favores a todos, numa demonstração de inconsciência econômica que corre o risco de comprometer, de maneira estrutural e sistêmica, as possibilidades de crescimento sustentado no Brasil .. . O contrato social efetuado andou na direção de distribuir renda e favores, antes de acumular produção e renda ampliada.” (p. 89). Uma das consequências foi deterioração econômica, diversos planos de estabilização fracassados até o advento do Plano Real, com FHC à frente do Ministério da Fazenda e um grupo de economistas da PUC do Rio, com formação liberal. “Não parece existir, na história econômica mundial, algum outro país que tenha tido cinco ou seis instrumentos monetários sucessivos, num turbilhão de inflação e de mudança de regras. (p.89). 

O livro contribui para fazer justiça às transformações na política externa introduzidas em 1990. “O governo Collor tinha a pretensão de deslocar o país ... do grupo dos países em desenvolvimento para o clube da OCDE ... Collor operou, portanto, a primeira viragem decisiva na política nuclear brasileira, ao terminar com as loucuras militares, ao aceitar a ratificação plena do Tratado de Tlatelolco e ao dar prosseguimento à construção de confiança com a Argentina nessa área.” (p. 91)

No âmbito regional, transformou o processo de integração com a Argentina, iniciado em meados dos anos 1980. Mais de uma dezena de protocolos setoriais, visando à complementação produtiva e à abertura apenas recíproca, foram alterados. Com base na Ata de Buenos Aires, de julho de 1990, os protocolos foram substituídos por um mecanismo automático, irrecorrível e universal de reduções tarifárias, destinadas a construir o livre comércio com a Argentina. “Nascia aí, verdadeiramente, o Mercosul, que só veio a ser quadrilateralizado um ano depois, mas sob os mesmos dispositivos de abertura econômica e liberalização comercial que tinham sido concertados entre os governos Collor e Menem.” (p. 92)

A curta transição, operada por Itamar Franco, teve a virtude de dar carta branca a FHC para formular e implementar o Plano Cruzado, em julho de 1994 - a chave da exitosa estabilização de um país com inflação crônica e galopante. “O Brasil passou de uma inflação anual de três dígitos para a casa do milhar e já tendo conhecido seis trocas de moedas no espaço de uma geração”. (p. 94)

Com a casa em ordem, FHC deu continuidade à abertura moderada no plano regional e global, abandonou o conceito difuso de América Latina para o espaço geográfico mais concreto da América do Sul. Além do reformismo econômico doméstico, avançou no diálogo com s instituições de Bretton Woods, o que foi providencial para o país enfrentar a sequência de turbulências financeiras internacionais : moratória mexicana de 1994; crise asiática de 1997; crise russa de 1998; e a própria crise brasileira do ano seguinte. Avançou também na “inserção do país nos foros mais sensíveis da agenda mundial de segurança – nos terrenos nuclear, espacial e de exportações de equipamentos de uso dual”. (p. 94)

O perfil acadêmico de PRA e sua natureza de contestador se combinam para, ao final da avaliação do governo FHC, fazer referências que, por um lado, são coerentes com a pesquisa acadêmica e, por outro, espelham sua militância liberal. Os trechos a seguir refletem essa dupla vocação. “Deve ser registrado, porque se trata de fato histórico importante para a trajetória ulterior do Plano Real, que o Partido dos Trabalhadores se opôs frontalmente à sua implementação, em qualquer de suas etapas, tentando inclusive embargar a Lei de Responsabilidade fiscal em processo movido junto ao STF. ... Felizmente, a primeira administração do PT soube preservar os elementos mais relevantes do Plano Real, ainda que nas administrações posteriores determinados aspectos (metas de inflação, superavit primário e flutuação cambial) tenham conhecido sensível deterioração, tal como confirmado pelos principais indicadores econômicos.”

Alguns livros e muitos artigos de PRA se dedicam à análise da atuação externa do período Lula-Dilma, por ele caracterizado como a diplomacia do “nunca antes”. “Diversas dentre as iniciativas exibidas posteriormente pelos governos do PT como feitos “inéditos” na política externa a partir de 2003 ... tinham sido de fato iniciadas sob os dois mandatos de FHC. ... O governo FHC se beneficiou apenas parcialmente do crescimento meteórico da China ... Bafejado pela procura chinesa, este último (Lula), pouco fez para estimular a competitividade brasileira, anteriormente beneficiada pelas medidas de abertura adotadas pelos governos FHC.” (p. 95)

Nessa linha, PRA refere a uma interpretação de Rubens Ricúpero, segundo o qual Lula conduziu uma política externa de roupagem gaullista, ou seja, moldada na figura do General De Gaulle. (p. 96). Segundo PRA, diversos colegas diplomatas confirmam que “o Itamaraty foi colocado a serviço pessoal do chefe de Estado, de suas muitas viagens e de sua desenvoltura nos contatos com vários líderes internacionais.” (p. 96) 

Em contraste com a divulgação ampla dos êxitos da diplomacia da era Lula, PRA focaliza episódios que resultaram em prejuízos ao país. O primeiro foi a passividade diante da expropriação dos ativos da Petrobrás, no âmbito da nacionalização dos hidrocarburos na Bolívia, então sob Evo Morales. O segundo foi a ruptura com o princípio da não intervenção em assuntos internos de outros países, evidenciada no apoio ostensivo do governo brasileiro a candidatos presidenciais no Peru e na Bolívia. Outro episódio foi a iniciativa turco-brasileira destinada a encontrar uma solução para o complexo nuclear iraniano, que resultou em derrota contundente dos dois países em votação no CSNU. 

Fonte adicional de prejuízo para o país foi a ausência do Brasil nas dezenas de acordos de livre comércio negociados nas primeiras décadas deste século. A hipertrofia da diplomacia presidencial também mereceu críticas, sobretudo pelo fato de algumas visitas do Presidente terem sido improvisadas, com falta de estudos e avaliações de diplomatas sobre os assuntos bilaterais ou multilaterais. PRA se refere de forma crítica e um tanto irônica, por exemplo, à proliferação, por iniciativa e sob os auspícios do Brasil, de reuniões de cúpula de Chefes de Estado da América do Sul e Caribe, dos países árabes e de nações africanas. “Nunca anates na história da região se fizeram tantas reuniões de cúpula, nunca antes os presidentes foram tão amigos entre si. Não se pode dizer, todavia, que a causa da integração tenha avançado satisfatoriamente, mesmo com toda a retórica a seu favor.” (p. 99) 

Ao referir-se aos três grandes objetivos da diplomacia lulista – cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas; reforço e expansão do Mercosul; e conclusão exitosa das negociações multilaterais da Rodada Doha – PRA conclui que “nenhum deles foi conquistado, sequer arranhado.” (p. 98)

 A avaliação das diretrizes econômicas e da diplomacia de Dilma Rousseff é igualmente muito negativa, “pela mediocridade de sua política econômica e pela total inexpressividade de sua política externa”. (p. 100) Os fracassos: o diagnóstico de PRA a respeito do impeachment da Presidente é no sentido de que “a natureza da crise foi basicamente fiscal”: aceleração inflacionária acima das metas de inflação; alguma desvalorização cambial. As causas formais do impeachment incluem a manipulação do orçamento, o financiamento irregular de déficits setoriais, a utilização ilegal dos bancos públicos, e o descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Tais irregularidades, somadas aos desentendimentos com líderes partidários e ao clamor das ruas, desembocaram no afastamento da Presidente.

Os revezes da diplomacia de Dilma em muito superaram os escassos êxitos: “a suspensão irregular do Paraguai do Mercosul, o ingresso ilegal da Venezuela no bloco, e a demissão do primeiro chanceler por causa de uma crise com a Bolívia”, provocada pelo asilo de senador boliviano por mais de 400 dias na Embaixada do Brasil em La Paz, e de sua retirada clandestina da Bolívia, com ajuda de nosso Encarregado de Negócios. (p. 101) 

Os dois chanceleres do governo Temer, José Serra e Aloysio Nunes, ao reduzirem a interferência partidária na política externa, foram objeto de uma campanha, no Brasil e no exterior, de uma campanha que denunciava o “golpe” do impeachment. Nas palavras de PRA, aqueles chanceleres conduziram “uma bem-sucedida reversão a padrões mais tradicionais de condução diplomática e de orientação em política externa”. (p. 103)

O livro de PRA, além da síntese de nossa historiografia, e da visão em perspectiva de nossas relações internacionais, examina, nos capítulos subsequentes, dois aspectos fundamentais de nossa ação externa: o processo decisório e as diplomacias presidenciais. 

 

(iv)          Política externa e diplomacia do governo Bolsonaro. O império da barbárie. 

A avaliação abrangente e altamente crítica de PRA a respeito da política externa e da diplomacia do governo Bolsonaro perpassa os diversos capítulos do livro. As duas vocações que se revelam nos trabalhos de PRA e indicados no início desta resenha - o acadêmico e o militante – aparecem, a partir de agora, com grande nitidez. Vejamos como se desdobra a análise crítica de PRA a respeito da ação externa do atual governo. 

 

(continua...)